Documento LTM36.206.421

Jurisprudencia

Rubro: Acórdao 1209/20.6PIPRT.P1 CRIME DE AMEAÇA
Fecha: 07/11/2024
Número: 1209/20.6PIPRT.P1
Origen: Tribunal da Relaçao do Porto
Tipo Asunto: Recurso penal (conferência)
Tipo resolución: Resolución
Ponente: NUNO PIRES SALPICO
Marginal: RP202411071209/20.6PIPRT.P1
País: Portugal



TEMA

I - O arguido ao simular apontar uma arma de fogo à ofendida, ambos circulando em autoestrada, inevitavelmente essa ameaça envolve uma componente futura, dado que a circulação rodoviária entre veículos, embora dinâmica, implica alguma permanência e proximidade entre si, com possibilidade de reencontro mais adiante.II - A ofendida condutora, precisamente para evitar essa possibilidade, viu-se obrigada a abandonar a autoestrada na saída mais próxima.

TEXTO

Processo nº1209/20.6PIPRT.P1



X X X




Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:



No processo comum com intervenção do Tribunal Singular do Juízo Local Criminal do Porto, do Tribunal judicial da Comarca do Porto, o Ministério Público foi proferida sentença que condenou o arguido nos seguintes termos:
Pelos fundamentos expostos, decido:
A) Condenar o arguido, AA , pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada , p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, na pena de 6 (seis) meses de prisão.
Substituo, ao abrigo do artigo 45.º, n.º 1 do CP, esta pena de 6 (seis) meses de prisão por pena de multa, indo o arguido condenado na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz um total de € 900,00 (novecentos euros).
Caso não proceda ao pagamento da referida multa, o arguido cumprirá a referida pena de prisão de 6 (seis) meses (artigo 45.º, n.º 2 do CP ).
B) Condenar, ainda, o arguido, nas custas do processo, que compreendem 2UC de taxa de justiça (artigos 513.° e 514.°, ambos do CPP e artigo 8.º, n.º 9 do RCP ).


Não se conformando com a decisão, o arguido veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes Conclusões:
1.º O douto Tribunal errou ao condenar o arguido pelo crime de ameaça agravada, punido e previsto nos art.153.º, n.º1 e 155.º, n.º1, al.a) ambas do CP.
2.º Tendo efetuado uma errónea aplicação da matéria de direito aos factos que deu como provados e transcritos no ponto 1.º destas alegações.
3.º Pois dos factos dados como provados, resulta claramente a falta de elemento objetivo do tipo de legal de crime de ameaça, que é o anúncio do mal futuro.
4.º Pois da matéria dada como assente e referida nestas alegações, nomeadamente no ponto 1.º g)” Desagradado com esse comportamento e com a circunstância de ter sido chamado à atenção por BB, AA simulou a posse de uma arma, apontando-a pela janela em direção de BB, num vulgar gesto entendido por todos como significando que atentaria contra as suas vidas;”, resulta que a ameaça foi iminente no futuro.
5.º Igualmente resulta da matéria no ponto1 .ºh) dada como provada na douta sentença recorrida que” Imediatamente, CC imprimiu velocidade ao “..-..-VF” e abandonou a auto-estrada a partir da saída mais próxima;”, que a atuação do arguido não traduz qualquer anúncio do mal futuro, mas sim presente.
6.º Também resulta da matéria do ponto 1.ºi) destas alegações, dada como provada na douta sentença recorrida” Como consequência direta e necessária da conduta de AA, CC, à data em fase final e gravidez, BB, e o filho menor de ambos sentiram-se assustados, receando, face ao gesto dirigido por aquele, que o mesmo pudesse colocar em perigo a sua segurança física;”, o que demonstra a falta do requisito objetivo do anúncio do mal futuro.
7.º Igualmente se extrai de forma inequívoca da matéria dada como provada na douta sentença recorrida, no ponto 1.ºj) destas alegações “ AA atuou com o propósito de ameaçar e intimidar, BB, anunciando a sua intenção de lhe infligir um mal que sabia constituir crime contra a sua vida, não ignorando que o seu gesto era adequado a provocar-lhe medo de concretizar tal intento, como aconteceu;”, que a conduta do arguido não integra qualquer anúncio do mal futuro.
8.º Bem mal andou o douto Tribunal ao considerar atenta à matéria que deu como provada, que se verificava o elemento objetivo de tipo legal de crime, anúncio do mal futuro.
9.º A matéria dada como provada, estamos perante um anúncio de um mal iminente, no presente e nunca um anúncio de mal futuro.
10.º Pois toda a descrição factual da matéria dada como provada, se refere ao momento, ao presente e de forma momentânea.
11.º Não imputando ao arguido um anúncio do mal futuro, requisito essencial para que o arguido fosse condenado.
12.º Pois a conduta do arguido tendo em conta a matéria de facto provada, não traduz qualquer atuação no futuro contra o ofendido.
13.º Falta assim dada a matéria como assente na douta sentença recorrida o preenchimento do elemento objetivo de tipo de legal de crime que é um anúncio de mal futuro.
14.º Aliás, é esta característica temporal do mal ameaçado, anuncio do mal futuro, que serve para preenchimento do tipo legal de crime, anuncio do mal futuro, que dada a matéria provada na douta sentença recorrida, não se verifica.
15-º O tribunal aplicou erradamente a matéria que o mesmo deu como provada e aqui como evidenciada, o respetivo direito.
16.º Pois não se verificando da matéria provada e da atuação do arguido qualquer anúncio do mal futuro, nunca poderia dar como assente a verificação do elemento objetivo do tipo legal de crime de ameaça, previsto no art.153.º, n.º1 do CPenal.
17.º Condenando erroneamente o arguido, pois não se verifica toda a matéria dada como provada, nem se extrai da mesma que a atuação do arguido e dada como provada se traduziu num anúncio de mal futuro.
18.º Existiu um erro de aplicação do artigo 153.º, n.º1 e 155.º, n.º1, al.a) ambos do CPenal.
19.º Pois atenta à matéria dada como provada na douta sentença recorrida, não se verifica o elemento objetivo do tipo legal de crime de ameaça- anuncio do mal futuro, entendendo erroneamente o tribunal recorrido que se verificava tal requisito, quando da matéria de facto dada como provada o mesmo não se verifica.
Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando se a douta sentença recorrida por a matéria de facto dada como provada na douta sentença, não preencher o requisito objetivo - anúncio do mal futuro do crime de ameaça, absolvendo se o arguido.
No entanto, V.Exas farão inteira e sã justiça.
*

O Procurador do MP veio responder nos seguintes termos
Ao contrário do doutamente alegado, afigura-se-nos que, salvo o muito e devido respeito, o anúncio de um mal iminente, mas que – felizmente – se não concretiza… é, obviamente, o anúncio de um mal futuro.
Tal é também o entendimento perfilhado no douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no Processo nº 775/18.0GBVFR.P1 em 26-05-2021, e em cujo Sumário se explicita que:
“I – O mal objeto da ameaça tem de ser um mal futuro.
II - O mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há de ser, que há de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer.
III – Sendo o mal iminente, poderemos estar perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é do respetivo mal (já que segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, atos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico); mas daí se não segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça.”
No mais, subscrevemos na íntegra o entendimento perfilhado pelo Mmo Juiz de Instrução no seu douto despacho de Pronúncia de fls. 222 e ss., que se nos afigura manter a sua validade, pelo que, e com a devida vénia, o passamos a reproduzir, nomeadamente na parte em que esclarece que: no Código Penal de 1995, passou a exigir-se apenas que a ameaça seja suscetível de afetar, lesar a paz individual ou liberdade de determinação, não sendo necessário sequer que em concreto se tenha provocado medo ou inquietação no ofendido ou tenha o mesmo ficado afetado na sua liberdade de determinação (neste sentido Figueiredo Dias, Atas, 1993, 500); deixou assim, este crime de ser um crime de resultado ou dano, como sucedia no Código Penal de 1982, para passar a ser um crime de mera ação ou perigo (Comentário Conimbricense, dirigido pelo mesmo autor, tomo I, 1999, p. 348). Com efeito, como se refere no dito Comentário “o critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objetivo-individual: objetivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é suscetível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades do ameaçado”.
Ainda a propósito da iminência ou não do mal anunciado, refere aquele douto despacho que:
“essa característica essencial do crime de “ameaça” – o mal ameaçado ter de ser futuro – está presente no caso em apreço. As circunstâncias em que são descritas a ação e o querer do arguido - quando do seu veículo fez o gesto de simular a posse de uma arma, apontando-a pela janela em direção do ofendido num gesto entendido por todos de que atentaria contra a vida deste, são indicativas do aviso de uma ofensa contra a vida e contra a sua integridade física ocorrerá num momento posterior, que irá concretizar-se no “futuro”. Sobre a interpretação de mal “futuro”, é unânime a jurisprudência dos nossos tribunais superiores que considera que “tudo o que não seja execução iminente ou em curso – caso de uso de violência – é futuro, em termos de anúncio de causação de um mal, sendo indiferente que a expressão usada seja “agora”, “hoje”, amanhã ou para o ano. Futuro é todo o tempo compreendido naquele em que é proferida a expressão que anuncia o mal que o seu autor diz que será causado, não acompanhada, esta, de atos correspondentes à sua simultânea ou absolutamente imediata concretização. Ou seja, sempre que alguém dirija a outrem uma expressão verbal – ou de outra natureza – de anúncio de causação de um mal, não acompanhando essa ação com os atos de execução correspondentes – permanecendo inativo em relação à execução do mal anunciado –, todo o tempo que durar essa inação e se mantiver a possibilidade de o mal anunciado se concretizar é o futuro, em termos de interpretação da expressão em causa.” (Entre outros, Ac. T.R. Guimarães de 18/11/2013 proc 52/11.8GBFLG, de 21/5/2018 Proc. 375/16.0GAVLP e de 07/01/2008, proc. 1798/07-2 em www.dgsi.pt.). “
Ali se cita igualmente, desta feita, também a nível doutrinário, que “O Prof. Taipa de Carvalho in (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, cit., pág. 343) assinala que “O mal ameaçado tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objeto da ameaça, não pode ser iminente , pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é do respetivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coação, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex, haverá ameaça, quando alguém afirma hei-de-te matar:
já se tratará de violência quando alguém afirma “vou-te matar já”. Ameaçar “é anunciar a alguém um grave e injusto dano, necessariamente futuro” (Ac. da Rel. do Porto de 17-1-1996, proc.º n.º 9540886 in www.dgsi.pt). 22º, n.º1).”
Finalmente, e analisando agora a questão de saber se a actuação do arguido é ou não é adequada a provocar medo ou inquietação, ali se refere que:
“O critério para ajuizar da adequação da ameaça para provocar medo ou inquietação ou para prejudicar a liberdade de determinação, deverá ser objetivo e individual: - objetivo, no sentido de que a ameaça deve considerar-se adequada, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida, bem como a personalidade do agente e a suscetibilidade de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa e – individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada”, (Ac. da RL de 09/02/2000, in CJ, Tomo I, pág. 147).
Citando-se Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal Anotado, 2ª edição, p. 185: «Como desde logo se alcança, parece-nos não se tratar agora, e ao invés do que sucedia no texto anterior, de um crime de resultado. Na verdade, enquanto no número um do art. 155º do texto de 1982 se exigia que o agente tivesse provocado no sujeito receio, medo, inquietação ou lhe tivesse prejudicado a sua liberdade de determinação, agora basta que o agente se tenha servido de expediente adequado a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar-lhe a sua liberdade de determinação . Assim, desde que a ameaça seja adequada a provocar o medo, mesmo que em concreto o não tenha provocado, verifica-se o crime ». No mesmo sentido se pronunciou Figueiredo Dias no seio da Comissão Revisora do Código Penal - cfr. Acta n.º 45”. Na realidade, após a revisão do Cod. Penal de 1995, passou a ser claro que no crime de ameaça não se exige que, em concreto, o agente tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afetada a liberdade de determinação do ameaçado, bastando que a ameaça seja suscetível de a afetar. O crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano.
Ora, no caso em apreço, e no enquadramento supra descrito bem como a forma como foi efetuado o gesto fazendo crer, através daquele gesto que atentaria contra a vida do ofendido, neste enquadramento, não pode deixar de ser considerado «adequado» a causar medo, inquietação e a prejudicar a liberdade de determinação do visado.
É isso que indicam as regras da experiência e a normalidade do acontecer das coisas da vida.
Em suma, no caso sub judice, a factualidade descrita na acusação integra a tipicidade objetiva do crime de ameaça agravada p. e p. pelos artsº 153º, nº1 e 155º nº1 al.a) do Cod. Penal, pelo que não assiste razão à requerente da instrução.”
Face ao exposto, afigura-se não assistir razão ao douto Recurso.
CONCLUSÕES:
- Ao contrário do doutamente alegado, o anúncio de um mal iminente corresponde ao anúncio de um mal futuro: um mal iminente é, obviamente, “um mal que ainda não aconteceu, que há de ser, que há de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer.”
- Nesta conformidade, não se verifica o invocado erro de aplicação do artigo 153.º, n.º1 e 155.º, n.º1, al. a), ambos do Código Penal, pelo que foi o arguido justamente condenado pela prática de tal crime.
- Nada há, portanto, a censurar à Sentença ora recorrida, que não padece do vício que lhe é apontado, tendo sido ponderada devida e justamente toda a prova produzida, revelando-se a decisão proferida como sendo adequada, formal e materialmente correcta, e devidamente fundamentada, pelo que, confirmando-a nos seus precisos termos, farão Vossas Excelências JUSTIÇA
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Neste Tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu, pugnou pela improcedência do recurso.
Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal, o arguido veio responder.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
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II. Objeto do recurso e sua apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar ( Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.
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Deste modo integram o objecto do recurso a arguição:
Não verificação típica do crime de ameaça.
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Cumpre decidir.
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Do enquadramento dos factos.
A sentença:
Em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, vem pronunciado o arguido:
- AA , casado, motorista, filho de DD e de EE, nascido em ../../1960, natural de ... – ... e residente no Bairro ..., ... – ..., ... ..., ...,
pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada , p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal (CP).
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O arguido apresentou contestação, tendo oferecido o mérito dos autos e tudo que em seu favor resultar da audiência de discussão e julgamento.
Por outro lado, alega que não praticou os factos conforme vem exposto na acusação deduzida.
Acrescenta, ainda, que não se verifica o cometimento por parte do arguido do crime de ameaça agravada, não se encontrando preenchido o elemento objetivo do tipo legal de crime.
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Procedeu-se a Julgamento de acordo com as formalidades legais, não se tendo suscitado nulidades, exceções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer.
II - FUNDAMENTAÇÃO
A) DE FACTO
Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos :
1º) Em 24 de julho de 2020, a hora não concretamente apurada, mas situada no período compreendido entre as 20h12m e as 20h20m, na auto-estrada A20 – Circular Regional Interior do Porto (CRIP), sentido ..., CC circulava ao volante do automóvel ligeiro de passageiros, de marca ..., com a matrícula ..-..-VF, transportando, no lugar do passageiro, BB e no banco traseiro o filho menor de ambos;
2º) Nessa ocasião, no mesmo sentido de trânsito, AA circulava ao volante do automóvel pesado de mercadorias, de marca ..., com a matrícula ..-EU-..;
3º) À data dos factos, a sobredita auto-estrada era composta por tês vias de trânsito afetas ao mesmo sentido;
4º) Nas sobreditas circunstâncias de tempo e lugar, o veículo conduzido por CC ocupava a via de trânsito central e o veículo conduzido por AA ocupava a via de trânsito mais à direita;
5º) Subitamente, sem efetuar qualquer sinalização da manobra, AA mudou a direção do “..-EU-..” para a via de trânsito à sua esquerda, passando a ocupar a via de trânsito onde circulava o “..-..-VF”;
6º) Nesse instante, CC buzinou e conduziu a sua viatura para a via de trânsito mais à sua esquerda, ficando em linha paralela com a viatura onde seguia AA;
7º) Desagradado com esse comportamento e com a circunstância de ter sido chamado à atenção por BB, AA simulou a posse de uma arma, apontando-a pela janela em direção de BB, num vulgar gesto entendido por todos como significando que atentaria contra as suas vidas;
8º) Imediatamente, CC imprimiu velocidade ao “..-..-VF” e abandonou a auto-estrada a partir da saída mais próxima;
9º) Como consequência direta e necessária da conduta de AA, CC, à data em fase final de gravidez, BB, e o filho menor de ambos sentiram-se assustados, receando, face ao gesto dirigido por aquele, que o mesmo pudesse colocar em perigo a sua segurança física;
10º) AA atuou com o propósito de ameaçar e intimidar, BB, anunciando a sua intenção de lhe infligir um mal que sabia constituir crime contra a sua vida, não ignorando que o seu gesto era adequado a provocar-lhe medo de concretizar tal intento, como aconteceu;
11º) AA conhecia os factos descritos e quis sempre atuar como atuou;
12º) AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida;
13º) O arguido é casado e vive com a esposa e a sogra;
14º) O arguido tem três filhos, os quais são todos maiores de idade;
15º) O arguido tem a profissão de motorista, sendo que, atualmente, não exerce tal atividade, e
16º) O arguido já sofreu três condenações pela prática de crimes diversos (sequestro, extorsão na forma tentada, falsificação de documentos e abuso de confiança contra a Segurança Social ), por factos praticados em data anterior aos dos presentes autos, estando as respetivas penas já extintas e/ou cumpridas, conforme decorre do certificado de registo criminal (CRC), junto aos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
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Não se provaram quaisquer outros factos em audiência de julgamento.
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A convicção do Tribunal no que toca aos factos dados como provados, fundou-se na análise conjugada e critica do conjunto da prova, produzida no julgamento, com a prova documental, junta aos autos, apreciada nos termos do artigo 127.º do CPP.
Assim:
- no que toca aos factos 1º) a 12º), atendeu-se, desde logo, à análise critica das declarações prestadas, em audiência de julgamento, pelo arguido, o qual confirmou que, desde o ano de 2008 até ao ano de 2021, chegou a conduzir o mencionado veículo automóvel pesado de mercadorias, de marca ..., com a matrícula ..-EU-...
Porém, de forma não convincente para este Tribunal, referiu que não se recorda da situação concreta a que se alude nos presentes autos, ocorrida no dia 24 de julho de 2020, situada no período compreendido entre as 20h12m e as 20h20m, na auto-estrada A20 – Circular Regional Interior do Porto (CRIP), sentido .... Além disso, atendeu-se aos depoimentos, credíveis e convincentes, prestados, em tal audiência, pelas seguintes testemunhas de acusação:
- BB, Chefe da P.S.P., o qual confirmou que, no circunstancialismo de tempo e lugar, indicados na acusação pública dos autos, seguia, no lugar de passageiro, no interior do referido veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca ..., com a matrícula ..-..-VF, conduzido, na altura, pela sua esposa, CC, e transportando, ainda, no banco traseiro, o filho menor do casal, sendo que, tal veículo automóvel, seguia no sentido ... e ocupava a via de trânsito central.
Mais confirmou que, a determinada altura, o arguido circulando ao volante do mencionado veículo automóvel pesado de mercadorias, o qual seguia no mesmo sentido de trânsito e ocupava a via de trânsito mais à direita, de repente, sem efetuar qualquer sinalização da manobra, mudou de direção, passando a ocupar a via de trânsito onde circulava o veículo em que seguia o depoente, altura em que a referida esposa do depoente, perante o sucedido, buzinou e passou, depois, a conduzir a sua viatura para a via de trânsito mais à sua esquerda, ficando em linha paralela com a viatura onde seguia o arguido.
Tal testemunha confirmou, ainda, que, perante a referida manobra do arguido e dado que este não pediu desculpa, o depoente mostrou a sua indignação, barafustando com o referido motorista, no caso o arguido, altura em que este, com ar sério, fez um gesto com a mão, simulando a posse de uma pistola, apontando pela janela em direção ao depoente , sendo que este, perante tal comportamento do arguido, ficou assustado, pois pensou que o arguido, sendo motorista de um pesado, podia ter consigo uma arma.
O referido depoente confirmou, também, que, perante o sucedido, e vendo a minha preocupação de desespero e o filho a chorar, a esposa do depoente, à data em fase final de gravidez, de seguida, imprimiu velocidade ao veículo que conduzia e abandonou a auto-estrada a partir da saída mais próxima.
Finalmente, tal depoente confirmou o teor do auto de reconhecimento presencial, a que se alude a fls. 174, e que a assinatura, constante de tal auto, é sua, tendo, na altura, reconhecido, sem margem para dúvidas, o arguido como tendo sido o autor do citado ato ameaçador, tendo-o identificado, ainda, na sala de audiências.
- CC, esposa da referida testemunha, BB, a qual confirmou a mencionada versão dos factos descrita pelo seu marido, tendo esclarecido, contudo, que, na altura em que o veículo que conduzia, ficou em linha paralela com a viatura onde seguia o arguido, a determinada altura, viu a cara do arguido e viu este a pôr a mão de fora, não tendo, porém, visto o gesto concreto que este fez.
Tal testemunha confirmou, ainda, que, perante o sucedido, a depoente, o seu marido e o filho de ambos, ficaram assustados, tendo, por isso, a depoente abandonado a auto-estrada a partir da saída mais próxima.
Finalmente, a referida depoente confirmou o teor do auto de reconhecimento presencial, a que se alude a fls. 173, e que a assinatura, constante de tal auto, é sua, tendo, na altura, reconhecido, sem margem para dúvidas, o arguido como sendo o motorista do referido veículo pesado de mercadorias, tendo-o, ainda, identificado na sala de audiências.
As mencionadas testemunhas de acusação prestaram um depoimento esclarecedor, coerente e consistente, razão pela qual mereceram a credibilidade deste Tribunal. Finalmente, atendeu-se ao teor dos seguintes documentos:
- Auto de denúncia: fls. 3-3/v;
- Print do registo de propriedade do automóvel pesado de mercadorias, da marca ..., com a matrícula ..-EU-..: fls. 9;
- Certidão permanente da sociedade comercial “A..., Transportes, Unipessoal, Lda.”: fls. 63-67;
- Informação prestada pela Autoridade para as Condições do Trabalho: fls. 71-74;
- Informação prestada pela Segurança Social: fls. 76-79;
- Informação prestada pela Direção Regional da Mobilidade e Transportes do Norte: fls. 107;
- Auto de reconhecimento presencial de AA por CC: fls. 173-173/v, e
- Auto de reconhecimento presencial de AA por BB: fls. 174-174/v.
Ora, conjugando a referida prova, produzida no julgamento, com a mencionada prova documental, junta aos autos, e apreciando a mesma à luz das regras da experiência comum, o Tribunal, na sua livre e fundada convicção, não teve quaisquer dúvidas em considerar que o arguido praticou os referidos factos dados como assentes.
No que toca aos depoimentos prestados, em audiência de julgamento, pelas testemunhas de defesa, FF (amigo do arguido, há mais de 40 anos ) e GG (amigo do arguido, há mais de 25 anos ), tais testemunhas não revelaram ter conhecimento direto dos factos a que se alude na acusação pública dos autos, razão pela qual não contribuíram para a descoberta da verdade material.
- No que toca aos factos 13º) a 16º), relativos à situação pessoal e profissional do arguido e aos seus antecedentes criminais, atendeu-se às declarações prestadas, em audiência de julgamento, pelo arguido, o qual confirmou tal factualidade e, ainda, ao teor do documento, atinente à referência nº 38940232 (CRC).
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B) DE DIREITO:
Vem o arguido pronunciado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada , p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do CP.
Dispõe o n.º 1 do artigo 153.º do referido diploma legal, que “ quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias “.
Por sua vez, a al. a) do n.º 1 do artigo 155º do CP, prescreve que “ quando os factos previstos nos artigos 153º e 154º forem realizados … por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos … o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153º, (…)“.
Ora, como é sabido, no crime do artigo 153.º do CP, não se exige que a ameaça provoque medo ou inquietação. Antes é mister que seja adequada a provocar um estado de temor ou medo capaz de limitar ou constranger, de forma reputada relevante, a paz individual ou a liberdade de determinação da pessoa visada.
Ora, analisando os factos provados, designadamente os factos 1º) a 12º), constata-se que se encontram preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivo do referido tipo legal de crime, dado que, em nosso entender, face à factualidade assente e colocando-nos na posição do ofendido, BB, é de concluir que o arguido, sendo motorista de um pesado de mercadorias, ao efetuar o referido gesto ameaçador, simulando a posse de uma arma, em direção do mencionado ofendido, sem qualquer motivo que o justifica-se, tal conduta do arguido é adequada a provocar receio a qualquer pessoa a quem seja dirigida, designadamente ao mencionado ofendido.
Assim sendo, o arguido cometeu o crime de ameaça agravada de que se encontra pronunciado.
*
(…)
*

III - DISPOSITIVO
(…)”,
*

Cumpre apreciar.
O objecto central do presente recurso consiste em saber se os factos apurados correspondem à tipicidade do tipo de crime de ameaças em que o arguido é condenado.
Os elementos de doutrina e jurisprudência enunciados pela decisão de pronúncia são ajustados ao caso em análise.
Primeiramente terá interesse proceder ao enquadramento que a doutrina tem conferido ao crime de ameaça no que importa discutir nos presentes autos.
Sobre o bem jurídico Taipa de Carvalho escreveu “.. é a liberdade de decisão e de acção. As ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afectam, naturalmente, a paz individual que a condição de uma verdadeira liberdade.” in “ Comentário Conimbrisence do Código Penal”, Tomo I., pág.342, Coimbra, 1999). Sobre o elemento objectivo o mesmo professor clarifica “ O mal ameaçado tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal.” (in Op.Cit.p.343).
Quanto ao elemento subjectivo, e no que nos interessa em discussão neste recurso, pode verificar-se com total desnecessidade de concretização do mal que se anuncia.
Com efeito, o PROF. CUELLO CALÓN precisa que: " O delito existe ainda quando o agente não se proponha executar o mal com que ameaçou, basta que cause no ameaçado a impressão de que a ameaça é séria." (ver " DERECHO PENAL- Parte Especial", Tomo II, p.695, Barcelona, 1961).
Quanto à exigência típica que a ameaça seja “adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou prejudicar a sua liberdade de determinação” deve igualmente ser convocada para a correta interpretação que se deva fazer da alegada ameaça. Sustenta Taipa de CarvalhoExige-se apenas que a ameaça seja susceptível de afectar, de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado (…) Deixou assim, o crime de ameaça, após a revisão de 1995, de ser um crime de resultado e de dano (…) passando a crime de mera acção e de perigo. (…)” (in Op.Cit.pág.348). Portanto, o legislador antecipou a tutela penal a comportamentos de risco, geradores de perigo.
Mais sustenta o mesmo professor que o critério de adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação é objectivo-individual. “ Objectiva no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (…) individual no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada. (…) A conclusão a tirar é a de que a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado” (in Ob Cit, p.348).
A este respeito Munoz Conde acrescenta sobre a sua “ adequação para intimidar tem de se relacionar com a pessoa do ameaçado e com as circunstâncias que o rodeiam: não é preciso que a ameaça chegue a intimidar o ameaçado, basta que objectivamente seja adequada a fazê-lo. Expressões como “vou-te matar” (…) podem ser mais ou menos intimidantes em função das circunstâncias e da própria condição de que profere as ameaças e de quem as recebe. (in “Derecho Penal Parte Especial”, 12ª edição, pág.159, Valência, 1999).
Com efeito, importando saber se estamos perante a ameaça de um mal futuro, verifica-se dos factos provados que, quer o arguido, quer a ofendida circulavam, respetivamente, em seus veículos numa autoestrada. O arguido ao simular apontar uma arma de fogo à ofendida, inevitavelmente esse ato envolve uma componente futura, dado que a circulação rodoviária entre veículos, embora dinâmica, implica alguma permanência e proximidade entre si, pois, pese embora a velocidade dos veículos seja diversa, a possibilidade de reaproximação entre os veículos é relativa e verificável, podendo novamente reencontrar-se mais adiante, vindo até, nesse âmbito, a apurar-se que a ofendida condutora, precisamente para evitar essa possibilidade, se viu obrigada a abandonar a autoestrada na saída mais próxima. E aqui reside a componente futura da ameaça.
O problema que tem sido discutido pela doutrina e jurisprudência situa-se na dimensão “temporal” da tipicidade da ameaça proferida. Necessariamente, o mal anunciado tem de ir além da execução de qualquer crime coevo ao momento do anúncio, sob pena de se estar a autonomizar tipicamente todas as verbalizações que costumam acompanhar o teatro das agressões ou tentativa de agressões ou de outros crimes mais graves como o homicídio. A encenação que o agressor usa quando molesta ou tenta molestar alguém, com todas as verbalizações e ameaças que profere, inscrevem-se na tipicidade dos crimes de ofensa à integridade física, e justamente não têm que ser autonomizadas, porque o receio ou a susceptibilidade de causar medo, esgotam-se na própria agressão ou no momento da tentativa de agressão, ainda que traumática. A insegurança e a intranquilidade e os receios que advém do episódio da agressão física, não tem autonomia típica e integram a lesão desse crime de resultado (exceto, claro está, se a par da agressão, forem proferidas com autonomia ameaças com projeção futura).
Deste modo, a ameaça para ter autonomia típica, não se pode confundir com a execução típica de crimes com exercício de violência. Porém, no caso concreto, a ameaça exuberantemente produzida não foi acompanhada de qualquer ato de execução de um outro delito, foi apenas uma ameaça “stricto sensu”, não tendo manifestamente razão o recorrente, dado estarmos perante um clássico delito de ameaça. Portanto, associada à problemática do carácter futuro da ameaça está a sua adequação típica (por essa razão, supra se chamaram à colação os critérios da doutrina sobre a adequação).
No caso sub júdice, não se integrado no objeto de recurso a discussão sobre o perfil factos que se apuraram (assim se estabilizando a aparência criada de uma arma de fogo direcionada), essa conduta é adequada a produzir o receio, que efetivamente ocorreu, sendo também inequívoca a dimensão futura do medo criado, nos termos atrás enunciados, desse modo improcedendo as conclusões do recurso.




DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso não provido, mantendo a douta sentença do Tribunal “A Quo”.

Condeno o arguido nas custas do recurso, fixando a taxa de justiça em 3 Ucs.




Sumário:
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Porto, 7 de novembro 2024.

(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)

Nuno Pires Salpico
Luís Coimbra
Ângela Reguengo Luz

PUNTO RESOLUTIVO

IMPROCEDENTE O RECURSO

VOTACIÓN