Documento LTM36.208.791

Jurisprudencia

Rubro: Acórdao 55/22.7T8SCG.L2-2 NULIDADE DA SENTENÇAOMISSÃO DE PRONÚNCIAFALTA DE FUNDAMENTAÇÃOCONCLUSÕES DE RECURSOREJEIÇÃOIMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTOUSUCAPIÃOTÍTULO
Fecha: 07/11/2024
Número: 55/22.7T8SCG.L2-2
Origen: Tribunal da Relaçao de Lisboa
Tipo resolución: Resolución
Ponente: CARLOS CASTELO BRANCO
País: Portugal



TEMA

I) Não ocorre nulidade da sentença recorrida, por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, se o Tribunal, apreciou todas as questões que lhe incumbia apreciar, em conformidade com o disposto no artigo 608.º do CPC e, no âmbito de tal apreciação, veio a concluir ficar prejudicada a consideração de instituto jurídico convocado pelo réu.II) Encontrando-se presente na decisão recorrida a fundamentação em que assentou o decidido não se verifica ocorrer o vício de nulidade assente na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.III) Não resultando, nem das conclusões, nem da motivação da apelação, qual a decisão alternativa que, em concreto, devesse ser proferida sobre os pontos de facto indicados – relativamente aos quais o apelante considera ter ocorrido errado julgamento -, deve ser rejeitado o recurso referente à impugnação da matéria de facto, por inobservância do ónus de impugnação contido na alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.IV) O título para aquisição por usucapião e para se desencadear a posse relevante para efeitos de tal instituto, não tem de possuir os requisitos de validade.(Sumário elaborado pelo relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do CPC).

TEXTO

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

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1. Relatório:
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1. Os autores instauraram a presente ação declarativa, constitutiva, seguindo a forma de processo comum, o que fizeram contra a ré, pedindo serem declarados proprietários do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo (…)34, correspondente às antigas descrições (…)09 e (…)14, e, consequentemente, canceladas as inscrições a favor do réu que incidem sobre a ficha (…)19 Santa Cruz da Graciosa, condenando-se o réu a reconhecer tal direito.
Para tanto, alegam que a autora herdou o imóvel de seus pais e, porque, concomitantemente, têm a posse dele, pública, pacífica e continuada, por todos reconhecida e respeitada, por mais que 20 anos, pelo que, mesmo que não tivessem título (que têm) o adquiriram pela forma originária da usucapião, nos termos dos artigos 1251.º, 1255.º, 1259.º, 1261.º, 1262.º, 1263.º a), 1287.º, 1288.º, 1296.º do Código Civil e artigo 50.º-1 e 2 a) do Código do Registo Predial.
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2. Citado, o Réu contestou alegando a ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade dos pedidos e contradição entre os pedidos e causas de pedir, invocou a sua ilegitimidade e preterição de litisconsórcio necessário, impugnou os factos contantes da petição inicial e alegou ser um comprador de boa fé pelo que a eventual nulidade ou anulação do negócio jurídico não lhe é oponível nos termos do artigo 291.º do CC e que também este possui, de forma pública, titulada, de boa-fé, com animus possidendi , o prédio inscrito na matriz sob o artigo 3934, inscrito na Conservatória do Registo Predial sob o número (…)19/ Santa Cruz Da Graciosa., desde o dia 17 de julho de 2013. Peticionando a absolvição de todo o peticionado pelos AA.
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3. Foi dispensada a realização da audiência prévia e proferido despacho saneador, de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas de prova, tendo sido admitidos requerimentos probatórios.
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4. Teve lugar audiência de discussão e julgamento com produção probatória.
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5. Após, em 11-06-2024, foi proferida sentença que julgou a ação procedente, decidindo o seguinte:
“a. Reconhecer o direito de propriedade dos Autores RF e CM sobre o prédio sito na Terra (…) freguesia e concelho de Santa Cruz da Graciosa, inscrito na matriz sob o artigo (…)34 na área de 11.719,65m2 (que engloba toda extensão do prédio rústico incluindo o pasto e o mato).
b. Condenar o Réu CP a reconhecer tal direito de propriedade abstendo-se da prática de quaisquer atos perturbadores do seu exercício, nomeadamente de quaisquer atos que impeçam ou diminuam o uso e a fruição do prédio por parte dos Autores.
c. Determinar o cancelamento no registo do prédio rústico identificado em 1) da aquisição de ½ registada em nome do Réu.
d. Condenar o Réu nas custas processuais”.
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6. Não se conformando com esta decisão, dela apela o réu, pugnando pela procedência do recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:
“I- Resulta da douta sentença, ora em crise, que a invocação do regime previsto no artigo 291º do Código Civil não pode ser considerado, na medida em que a ação proposta pelo autor não resulta no pedido de nulidade do registo a favor do réu, mas sim no cancelamento da inscrição a favor do réu.
II- Assinala-se obscuridade na decisão, que neste primeiro momento se identifica no esforço de afastar o regime do artigo 291º do Código Civil, com opção que se afasta à letra da lei, em especial ao previsto no artigo 16º do Código de Registo Predial,
III- e pináculo da decisão de se auto eximir ao dever de pronuncia e apreciação do alegado pelo réu, determinando a sentença à nulidade prevista na primeira parte da alínea d) do número 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.
IV- No entanto, salvo o devido respeito por opinião contrária, e “na senda ” da jurisprudência do Tribunal da Relação de Coimbra, na palavras do Desembargador Alberto Ruço [TRC 117/19.8TFVN.C1 23-06-2020], a exceção à imperativa ( artigo 16º CR. Predial) declaração de nulidade do registo por via ao cancelamento do mesmo (registo de compra de um prédio) é feito, como no caso em concreto, por quem não adquiriu de um justificante.
V- Ou seja, será sempre necessário declarar a nulidade do respetivo negócio de compra e venda celebrado entre ambos.
VI- Ao contrário do que ocorreria se, o aqui réu tivesse adquirido a um justificante (situação em que bastaria obter a declaração de insubsistência do ato justificado que serviu de base ao contrato posterior), como, alias, se percebe do regime previsto no artigo 16º alínea c) do Código de Registo Predial.
VII- Ao contrário do que resulta da sentença, ora em crise, a presente ação terá como causa de pedir a nulidade do registo, o que se percebe atento ao alegado por AA. em 13º da petição; porque AA alegam erro no registo (articulado em 13º da Pi) e duplicação de descrições (articulado em 25º da Pi).
VIII- Ou seja, a sentença, ora em crise é incontestavelmente obscura, afastando o regime da nulidade, que é imposto expressamente por lei em vista à procedência de aquisição originária que, diga-se, tão pouco resulta minimamente provada!
IX- O certo é que o autor alega (abundante e confusamente) a existência de omissões e inexatidões sobre os sujeitos e o objeto a que o facto registado se refere, em síntese, reivindicando a propriedade que alega, na petição. Para tanto alegando que a propriedade em causa “sempre ter sido sua”, o que não pode deixar de se considerar incompatível com a decisão de aquisição originária.
X- Será indiscutível que se os autores sempre foram os proprietários do referido prédio não o poderão adquirir novamente, muito menos originariamente. Ou seja, mal se poderá perceber a decisão que não determine a nulidade do registo. Reitera-se, como decorre da lei pois se o registo foi efetuado, seja com base em títulos insuficientes, ou com inexatidões, o registo será, obviamente nulo (artigo 16º alíneas a) b) e c) ...C R Predial)
XI- Se percorrermos a matéria de facto dada como provada, em concreto e, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22, obviamente que se percebe a subsunção às nulidades dos registos previstas nas alíneas a c do referido artigo 16º do Código de Registo Predial, o que, determina a incompatibilidade do penúltimo parágrafo da fundamentação de direito, em concreto que a ação proposta pelos autores não se compatibiliza com uma ação de nulidade do registo.
Pelo contrário, pois se os autores alegam, ad nausea:
k) Em 2 e 5 o erro da descrição da área,
l) Em 3 que o dito prédio foi dividido,
m) Em 10 a o erro da falta de menção prevista no artigo 87 número 3 C R Predial.
n) Em 13 e 14 que a inscrição na matriz estava errada,
o) Em 15 que os serviços reiteraram no erro da inscrição,
p) Em 19 e 21 o erro da inscrição matricial que determinou reclamação.
q) Em 23 o erro da falta de identificação do imóvel na descrição.
r) Em 25 assinala-se uma duplicação das descrições.
s) Em 26 erro na inscrição e na descrição predial.
t) Em 32 assinala-se a dificuldade de correção dos erros “apontados”, isto é, de inscrição matricial e de descrição predial.
XI- Ou seja, verifica-se que a causa de pedir se circunscreve, CLARAMENTE, àquelas situações EXPRESSAMENTE prevista na lei escrita que determinam a nulidade do registo quando o mesmo se revelar “ falso ou tiver sido lavrado com base em títulos falsos (...) Quando tiver sido lavrado com base em títulos insuficientes para a prova legal do facto registado (...) Quando enfermar de omissões ou inexatidões de que resulte incerteza acerca dos sujeitos ou do objeto da relação jurídica a que o facto registado se refere (...) Quando tiver sido efetuado por serviço de registo incompetente ou assinado por pessoa sem competência (...) “
XII- A obscuridade da sentença, que auto se dispensa de especificar e justificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, em concreto por contraponto com os argumentos do réu, evolui em obscuridade evidente ao afastar o regime previsto no artigo 291º do código civil, sob o argumento de que os AA não peticionam a nulidade, mas sim o cancelamento das inscrições a favor do réu.
XIII- Acresce que a verdadeira CONFUSÃO que os autores imprimem á presente lide não os poderá beneficiar, sendo certo que pedem de tudo e mais qualquer coisa, a verdade é que a causa de pedir se sustenta, inquestionavelmente, na nulidade do registo a favor do réu.
XIV- Os autores sustentam a sua pretensão na causa de pedir NULIDADE do negócio, com apelo ao regime da venda a non domino e, que tendo herdado, sempre foram proprietários e que alguém terá vendido o prédio que não lhe pertencia ao réu. A fundamentação do non domino de quem vendeu ao réu é a nulidade do registo por via da nulidade da venda. O tribunal ignorou esta evidencia, prejudicando, seriamente, o comprador de boa-fé.
XV- Note-se que acresce, de forma evidente, o sentimento de injustiça decorrente da recusa da intervenção das demais pessoas que, no trato, se deveriam considerar interessadas na lide. Entre outras, por evidente, a pessoa que vendeu o imóvel ao réu. Motivo pelo qual se reitera e alega a preterição do litisconsórcio, nos termos do previsto no artigo 33º número 1 do código de processo civil.
XVI- Bem se percebe que os autores se declaram proprietários desde “sempre”, como eles próprios confessam/articulam, entre outros articulado 27, 28, 29, 30, 33, 34, 35) na causa de pedir, não podendo, por contraditório, ser delimitada a ação na aquisição originária, porque, conforme já assinalado, os autores identificam erros e imprecisões e duplicações e omissões no trato sucessivo, pretendendo alterá-lo, naturalmente com recurso à nulidade do registo e, desta forma, conforme resulta do nº 1 do artigo 17º do C. de Registo Predial vê-la declarada em julgado destruindo a presunção que deriva do registo a favor do réu.
XVII- Neste particular cumpre referir que, ao contrário do doutamente decidido na sentença, ora em crise, não será a natureza constitutiva da presente ação que afaste o regime previsto no artigo 291º do código civil. Nas palavras do Conselheiro Tavares de Paiva [STJ, 2392/13.2TBSTB.P1.S1, 13-10-2016] “(...) Quando se visa demonstrar pela via da acção factualidade integrativa do direito a que se arroga, a qual possa configurar também uma nulidade registrai, não repugna que essa demonstração possa ser feita em sede de acção declarativa, com vista a ilidir a presunção registral atinente, sem necessidade de previamente instaurar acção específica com vista exclusivamente à nulidade registral.(...) Existindo, aqui, sobretudo uma nulidade de carácter substantivo, consubstanciada na referida venda non domino, será através do art.º 291 do C Civil que se encontrará a solução." [negrito nosso]
XVIII- In casu, será, tendo por referência o alegado pelos autores, precisamente a venda de imóvel alheio ao reu que estará em causa. A ação que os autores propuseram visa, precisamente, ilidir os efeitos do registo a favor do reu. A própria sentença o afirma (fundamentação” e cita-se “os autores peticionam - o cancelamento das inscrições a favor do réu (...)” (evoluindo em discurso, já referenciado como obscuro, por consubstanciar um verdadeiro salto lógico, desde logo por ignorar a causa de pedir, os efeitos do artigo 16º do CR Predial e, sobretudo, o regime da venda de bens alheios e a proteção ao terceiro adquirente de boa-fé.
XIX- Ora, precisamente, por que estará em causa uma invalidade substancial que se percebe em consequência da venda, que afeta diretamente o negocio, mas sim uma invalidade substancial, ao contrário do decidido, seria de aplicar o regime previsto no artigo 291º do Código Civil. Reincidindo no apelo às Doutas palavras do Conselheiro Tavares de Paiva: “O art.º 291 do CC apenas visa “proteger as pessoas, por força da invalidade, veem o seu direito em risco porque o seu causante ou autor, em virtude dela, carece de legitimidade para o transmitir ou constituir (ilegitimidade do tradens).
XX- Bem se percebe, assim, que a decisão, ora em crise faz tabua rasa do referido regime, com a “agravante” de, nem sequer especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão de afastar tal regime, citando-se a decisão, “não cumpre apreciar tal argumento invocado pelo réu”. O que se estranha, pois, os autores alegam, abundantemente, na causa de pedir, a existência “de nulidade de carácter substantivo, consubstanciada na referida venda non domino, razão pela qual será através do art.º 291 do C Civil que se encontrará a solução.”
XXI- Razão pela qual se vem arguir a nulidade da sentença nos termos do previsto no artigo 615º número 1 alínea b) do código de processo civil.
XXII- Acresce a evidente preterição do litisconsórcio passivo necessário, pois, o réu é apenas o comprador de boa-fé, terceiro de boa-fé a toda a amálgama factual descrita e plasmada na petição inicial.
XXIII- Resulta, inclusivamente do articulado em 33 da pi o apelo ao conhecimento dos vendedores do prédio ao réu. Estes, naturalmente que têm interesse na lide, pois, como é óbvio serão chamados à responsabilidade na eventualidade do transito da decisão ora levada a recurso.
XXIV- É consabido que a preterição do contraditório é causa de nulidade do processo, por essa razão se impõe a ilegitimidade do R, também porque a ação deveria ter sido proposta contra os titulares (trato sucessivo) inscritos na matriz e registados na descrição predial dos interesses referidos em toda a matéria de facto articulada na Pi, 21º. Que sustentando uma draconina causa de pedir deita mão das relações, contratos, transmissões e putativos erros de diversas pessoas que, por força da própria natureza destas relações jurídicas haveriam de ter sido chamadas à presente lide. Razão pela qual se evidencia a preterição do litisconsórcio necessário passivo, nos termos do previsto no artigo 33º números 1 e 2 do Código de Processo Civil.
XXV- Quanto à pretendida aquisição originária, que acabou por ser declarada a favor dos autores, percebendo-se que a decisão faz tabua rasa, entre outros do disposto no artigo 291º do código civil e 16º do código de registo predial, cumpre referir que o tribunal não pode desconhecer que o réu, também ele, possui o prédio em causa.
XXVI- No relatório da sentença, resulta o conhecimento desta alegação do réu, “o Réu contestou alegando a ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade dos pedidos e contradição entre os pedidos e causas de pedir, invocou a sua ilegitimidade e preterição de litisconsórcio necessário, impugnou os factos contantes da petição inicial e alegou ser um comprador de boa fé pelo que a eventual nulidade ou anulação do negócio jurídico não lhe é oponível nos termos do artigo 291. º do CC e que também este possui, de forma pública, titulada, de boa-fé, com animus possidendi, o prédio inscrito na matriz sob o artigo (…)34, inscrito na Conservatória do Registo Predial sob o número (…)19/ Santa Cruz Da Graciosa., desde o dia 17 de julho de 2013. Peticionando a absolvição de todo o peticionado pelos AA."
XXVII- Desde logo assinala-se a desconsideração da posse a favor do R, desde o ano de 2013, isto é, há mais de nove (9) anos e sobretudo a desconsideração da confissão plasmada em 33º da petição inicial, que o réu comprou um terreno que confina com o dos autores. “que a parte que o primeiro comprou (...) é que confrontava com o prédio da A."
XXVIX- Confinando com o dos autores será um prédio distinto ao prédio inscrito na matriz sob o artigo 3934 e descrito na conservatória do registo predial sob o número (…)19, desde o dia 17 de julho de 2013,
XXX- O antes alegado não foi considerado, mas mesmo que o fosse, percebe-se o incumprimento do previsto na alínea a) do artigo 1294º do Código Civil, pois o réu, que comprou e possui o prédio contiguo ao dos autores, possui tal prédio há mais de 10 anos (à data da sentença) após o registo, pelo que no confronto das posses, provada a existência de título (registo/titulo a favor do réu) esta será a melhor posse.
XXXI- O réu desconhece, por lhe ser oculto, se alguém paga renda aos autores pelo uso do seu prédio. Estando em causa a parte relativa as inscrições (…)09 e (…)14.
XXXII- O Réu no seu depoimento explicou que possui uma casa com um logradouro no local em causa e que terá adquirido por escritura pública metade do terreno que fica após o seu logradouro. Referiu ainda que sempre viu lá uma pessoa a utilizar o terreno, mas que não sabia qual seria a parte correspondente à sua metade e nunca disse nada, até ser confrontado pelo Autor a dizer que tinha a propriedade da totalidade do terreno em finais de 2020. Nesta altura, dirigiu-se a pessoa que estava a explorar o terreno a informar que era proprietário de 1/2. Disse ainda que utilizou aquele terreno quando fez obras e que colocou lá pedras, na parte que é pasto. Mais relatou que o terreno tem cerca de 11 alqueires e que não tinha conhecimento de que estava arrendado. O Réu deixou claro que não sabia qual parte do terreno era sua.
XXXII- É evidente que a posse arguida pelos autores será uma posse oculta e esta é, indiscutivelmente uma posse que não permite a usucapião, nos termos do previsto no artigo 1297º do código civil.
XXXIII- Ora o réu é comproprietário, em partes iguais do artigo que comprou. Naturalmente que não sendo notificado da inversão do título da posse nos termos do artigo 1406º número 2 e 1265º, ambos do código civil, não poderá conhecer a posse de terceiros, o que determina a posse arguida pelos autores como posse clandestina, imprópria para usucapir. Percebendo-se que a sentença, ao declarar a aquisição originária dos autores, desconsiderou o previsto no número 2 do artigo 1406º do código civil.
XXXIV- Acresce que, também é dado como provado e com relevo para a decisão da causa que: “ De facto, da análise conjugada de tais documentos retira-se que, originalmente, o prédio sito na Terra (…) estava inscrito sob o n.º (…)14 e que tal prédio se desdobrou em 3 partes distintas: i) uma com 45 ares e 80 centiares de terra lavradia, vendida à BA, sob o qual foi constituída uma servidão de passagem, ii) outra constituída pela casa de morada com cozinha térreas, telhadas, alpendres e redutos de 19 ares e 6 centiares e iii) outra constituída por terra lavradia, mato e pomar com 47 ares e 79 centiares. Sob estes dois últimos prédios feitas hipotecas e foram inscritos, para o registo das hipotecas, com os nºs (…)08 e (…)09, respetivamente”.
XXXV- Verifica-se que a divisão antes referida abrange, também, terreno não apto para cultura o que o afasta do objeto da usucapião no confronto com as regras da proibição de fracionamento de prédios rústicos constante do artigo 107º do Decreto nº 16731 e da Lei nº 2116 que estabelecia a sanção de nulidade para a divisão de prédios rústicos de área inferior à estabelecida legalmente (com o artigo 1379º, conjugado com o art.º 1376º, ambos do C. Civil, esta sanção passou a ser a de anulabilidade, tendo voltado a ser a de nulidade com a redação dada ao mesmo artigo 1379º pela Lei n.º 111/2015.) O que obsta à aquisição originária da parcela de terreno registada a favor do réu, desde logo por corresponder a terreno não agrícola constituído por mato.
XXXVI- Acresce que, tão pouco resultou provado que a parte do terreno que o réu identifica como de sua compropriedade, o mato, terreno não agrícola, é confessado, pelos próprios familiares dos autores como não usado, ou seja, não o possuindo, tal como é referido na fundamentação da decisão, verificando-se a obscuridade decisória em interpretação que se identifica como uma indução fáctica, alheada de critérios de razoabilidade.
XXXVII- Note-se que, a testemunha CM explicou que na parte constituída por mato, nunca foi utilizada, isto é, possuída de facto. Também a testemunha SH explica que só utiliza a parte do pasto. Mais, que na configuração do prédio, existe um muro que separa o pasto da parte do mato. Mais, absolutamente relevante para afastar a posse, que foi sempre mato e que nunca o explorou.
XXXVIII- Ou seja, tal parte de terreno de mato nunca integrou o corpus da posse que, pela nossa conceção subjetiva, carece para que fosse declarada a aquisição originária daquele prédio. Resultando, assim, incumprido o previsto no artigo 1251º
XXXIX- Foram erradamente considerados provado os factos numerados de 11 e 12, 24 a 28.
XL- Tendo sido, por completo desconsiderado (na decisão que declara a aquisição originária contra o comproprietário) o regime da compropriedade que resulta, inclusivamente indiciado do registo do prédio do réu, transcrevem-se as declarações do réu que, pelo menos por essa forma, levaram ao conhecimento do tribunal que o réu será o comproprietário, tal como resulta das declarações do réu 00:02:04 ( Dia 09/10/2023 pelas 10 horas e 08 minutos e 56 segundos e o seu termo pelas 10 ) PC: Pronto, eu nunca disse que tinha a totalidade do prédio. Eu simplesmente quando comprei foi um meio do total do terreno, atrás de minha casa, atrás de casa Não, que eu tenho a casa, a minha moradia, sim, eu tenho a minha moradia. Tem um alargado atrás, com mais de 400 e tal metros, e depois é que tem os 10 alqueires atrás, do qual desse artigo, comprei na escritura e os vendedores, pelo menos com os papéis todos legais na escritura, foi o meio e não a totalidade. Portanto, são 10, cerca de 5000”
XLI- Não poderia, desta forma, o tribunal desconhecer o corpus e o animus possidendi do réu sobre a sua quota parte da compropriedade. Esta posse, a do proprietário, sobrepõe-se à declarada posse dos autores, sendo aquela publica, pacifica e titulada e a dos autores oculta.
XLII- Ao que acresce que, em momento algum se provou que a parte de terra comprada por CM correspondia à porção identificada como de mato.
XLIII- Aliás, esta questão deveria ter sido resolvida com recurso à razoabilidade, pois percebe-se que a parte de mato existe, precisamente porque nunca foi cultivada, isto é, por corresponder a uma porção de terra que não foi, ao contrário da demais, comprada por CM.
XLIV- Se atendermos à conjugação das certidões exaradas pelo Cartório Notarial de Santa Cruz da Graciosa livro (…), n.º, fl. 49, do livro (…)-B, n.º (…)09, fl. 43, do livro (…)-5, inscrição (…)96, fls. 94, certidão do livro 15-B, descrição n.º (….)14, fls. 43, do livro (…)-4, inscrição n.º (…)47, fls. 99, do livro C-4, inscrição n.º (…)81, fls. 189, da certidão exarada pela Biblioteca Pública e Arquivo Regional … do livro (…) E do notário da ilha da Graciosa, … a fls. 47 a 51 e do depoimento da testemunha CM não será possível concluir que o que CM declarou comprar correspondia a parte de terra lavradia, mato e pomar. Na verdade, esta testemunha nunca se referiu a CM como tendo adquirido a parte de mato. Alias, esta testemunha nunca referiu o nome de CM e, sobretudo disse, claramente que só teve contacto com a referida propriedade até 1981, data anterior à compra pelo aqui reu.
XLVI- (20231010102700_12282815_2870253.wma/CM/Dia 09/10/2023 pelas 10 horas e 27 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 49 minutos. /Transcrição/00:00:51: MC: ele disse que tinha 5 alqueires de terra, e eu disse a ele, só se a Terra tiver 10 alqueires, e a terra só tem 5, a minha cunhada tem 5 e para tu teres 5, precisava ter 10 e não é. (...) 00:13:34 tudo são uns onze mil e tal metros quadrados. O pasto tem 5000 e tal, o Mato 5000 e tal. /00:20:08 MC: não era pasto, era Terra lavradia e para cultivar, agora é que é pasto, mana altura era Terra lavradia era cultivado de milho e trigo.”
XLVII- Não poderá deixar de se perceber o erro no julgamento destes segmentos da matéria de facto provada.
XLIX- Mal julgada terá sido também a matéria de facto dada como provada em 12, pois não será com recurso à conjugação das certidões exaradas pelo Cartório Notarial de Santa Cruz da Graciosa livro (…), n.º, fl. 49, do livro (…)-B, n.º (…)09, fl. 43, do livro C- 5, inscrição (…)96, fls. 94, certidão do livro 15-B, descrição n.º (…)14, fls. 43, do livro C- 4, inscrição n.º (…)47, fls. 99, do livro C-4, inscrição n.º (…)81, fls. 189, da certidão exarada pela Biblioteca Pública e Arquivo Regional … do livro 77E do notário da ilha da Graciosa, … a fls. 47 a 51 e do depoimento da testemunha CM que se poderá afirmar que O prédio sito na Terra (…), inscrito na matriz sob o artigo (…)34 corresponde a realidade fáctica das antigas descrições (…)14 e (…)09.
L- Desde logo certamente que com recurso à provada gravada desta testemunha (antes transcrita) que não se alcança tal certeza. Muito menos do trato sucessivo quer da matriz quer da descrição urbana que, como ao autor confessam, sempre resultou indeferida na pretensão dos mesmos.
LI- Ou seja, neste segmento, tal como no anterior segmento impugnado (matéria provada em 11) dir-se-á, sempre muito respeitosamente, que a decisão é obscura por conter “passos” cujos sentidos serão ininteligíveis, insustentados e impercetíveis. Não estando em causa o principio da imediação nem da oralidade , o que não se logra perceber é como da conjugação das certidões exaradas pelo Cartório Notarial de Santa Cruz da Graciosa livro (…), n.º, fl. 49, do livro (…)-B, n.º (…)09, fl. 43, do livro (…)-5, inscrição (…)96, fls. 94, certidão do livro (…)-B, descrição n.º (…)14, fls. 43, do livro (…)-4, inscrição n.º (…)47, fls. 99, do livro (…)-4, inscrição n.º (…)81, fls. 189, da certidão exarada pela Biblioteca Pública e Arquivo Regional … (…) E do notário da ilha da Graciosa, precisamente as que, na versão dos autores, os remetem na impugnação (nulidade) dos registos poderão servir para concluir que o prédio sito na Terra (…), inscrito na matriz sob o artigo (…)34 corresponde a realidade fáctica das antigas descrições (…)14 e (…)09 (?)... de todo, bem pelo contrário, será desta conjugação que se perceberá não se tratar do prédio a que os autores fazem referencia.
LII- E não se diga que sogro da testemunha CM (CM) era proprietário do terreno comprado pelo réu, no limite seria comproprietário, não usando a parte de mato para a cultura, precisamente porque aquela parte não lhe pertencia. Caso contrário teria sido a mesma cultivada ou servido de pasto. Acresce que esta testemunha tão pouco demonstrou conhecimento sobre o trato registral, compras e vendas e, muito menos demonstrou conhecimento dos “negócios” praticados após 1981.
LIII- Tão pouco soube informar o seu depoimento com o carater publico da posse dos seus familiares e amigos. Razão pela qual não pode deixar de se considerar a existência de erro de julgamento na prova deste segmento identificado como 12.
LIV- Aliás, a testemunha foi bem clara ao afirmar que o arrendamento não abrangia a parte de mato e que o rendeiro explora a parte referente ao pasto. Ou seja, não tem a posse do referido mato. Precisamente, por respeito ao convencionado de que na compropriedade aquela parte não pertence aos ascendentes dos autores.
LVI- Neste sentido, também o depoimento de SH (20231010104911_12282815_2870253.wma/SH/Dia 09/10/2023 pelas 10 horas e 49 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 02 minutos./00:02:2800:02:50ADV1: Muito bem, e o senhor Utiliza, o que é, O que é que faz naquele terreno?00:02:56HS: em principio era Milho.(...) HS: hoje pasto.(...) ADV1: todo, muito bem, até lá acima ao mato.00:07:01DRVLF: portanto 50% é de Mato, e os outros 50% é o que o senhor explora. HS: é isso.00:07:12 DRVLF: Sempre, sempre se recorda daquele terreno estar de mato? 00:07:16 HS: sim, que eu me lembre sempre foi mato.”
LVII- Ou seja, ao contrário do que resulta da sentença, deste facto considerado provado, anão se poderá afirmar que esta testemunha tenha corroborado ou declarado no sentido de que a parte do mato, os 50% do terreno em causa, que o réu registou em compropriedade, de que tal parte tenha sido arrendada, explorada pelos ascendentes dos autores.
LVIII- Também esta testemunha é bem clara quando afirma que, cito“DRVLF: portanto 50% é de Mato, e os outros 50% é o que o senhor explora. HS: é isso.”Ou quando afirma que:“ DRVLF: Com quem falou que começar a usar aquele terreno?00:06:27HS: Foi com o Sr. CM a que era o sogro do Sr. F.00:06:37DRVLF: Aquele terreno qual é a área dele?00:06:40HS: deve ter uns 6 alqueires, uns cinco e tal metros quadrados. “
LIX-Entre outros no mesmo sentido, no sentido de afirmar que, afinal, ao contrário do decidido, os autores não possuem o terreno na sua totalidade. Aliás, o réu sempre referiu ser proprietário de 50%, ou seja, ser comproprietário, exercendo a sua posse, com a presunção própria do registo e tal como resulta provado das obras que foram relatadas pelas testemunhas, sendo que, inclusivamente as interpelou, mostrando-se surpreendido com o conhecimento da existência de um eventual contrato de arrendamento. Este que demonstra
LX- A testemunha CM explicou que na parte constituída por mato, apesar de fazer parte do terreno, não tem sido utilizada. A testemunha SH declara que só utiliza a parte do pasto quanto a configuração do prédio, explicou que há a casa do Réu, um logradouro e um muro que separa o logradouro do Réu do pasto e depois do pasto há a parte do mato, que foi sempre mato. Mais relatou que a parte do mato nunca explorou e que apenas uma vez viu que o Réu colocou no terreno. OU seja, não resulta ciência ou facto que permita afirmar que os autores sempre possuíram o referido prédio, resultando prejudicado os factos considerados provado de 25 a 28 (…)”.

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7. Os autores contra-alegaram, tendo concluído o seguinte:
“I. O R. veio, inconformado, interpor o recurso ao qual agora se responde alegando um conjunto de razões que, salvo as questões que abaixo se responderão, não são mais do que a manifestação do seu descontentamento com a, aliás, douta sentença. Tanto assim é que a prolixidade dos argumentos aduzidos parecem querer transformar a decisão de recurso numa nova decisão de primeira instância mais consentânea, claro está, com os desejos do R. e ora recorrente.
II. O R. olvida, como tentou fazer durante as sessões de julgamento, que a compra que alegadamente fez do prédio rústico em crise nos presentes autos há mais de 7 anos e que comunicou primeiramente ao rendeiro dos AA. e depois na própria contestação era referente à totalidade do prédio. Porém, com o decorrer da lide se tornou evidente que a existir alguma questão controvertida esta seria por 1/2 do prédio, o R. corrigiu o rumo e passou, como agora faz, a defender que afinal é proprietário apenas de 1/2 do prédio.
III. O R. tirou partido de alguma confusão registral e das vicissitudes que os AA. explanaram na p.i. para registar em seu nome parte do prédio.
IV. A convicção de que o direito de propriedade registado teria condições para se efectivar era de tal ordem insipiente que o R. adquiriu aquela parcela (na altura afirmou ter adquirido a totalidade) por €100 (cem euros), isto é, comprou por €100, 5.000 m2 ou na sua versão inicial 11.719,65 m2, valores entre 50 e 100 vezes inferior ao valor médio dos prédios naquela zona.
V. Resultou à saciedade da audiência de julgamento que o R. nunca teve a posse do prédio em crise nos autos.
VI. Sintomático da fragilidade da argumentação do R. é o facto de sustentar a alegada posse na ocupação ainda que temporária do prédio em crise nos autos com pedras de um muro divisório. Pedras estas que foram depois colocadas no muro que divide o logradouro do prédio do R. do prédio em crise nestes autos. Por conseguinte, o R. entendeu reforçar e reerguer um muro para dividir aquilo que é seu do que tinha adquirido. Co[n]venhamos que se trata do movimento inverso ao natural que é remover os muros quando se adquirem prédio contíguos.
VII. Os AA. nunca foram notificados da alegada venda por €100 (cem euros) para efeitos de exercício de preferência o que resulta da Lei. É que por €100 poderiam ter comprado aquilo que era sua propriedade uma vez que sempre sairia menos oneroso do que estar a internar uma ação como a que se acabou por se intentar. Não o foram porque os vendedores sempre souberam que não eram proprietários daquele prédio.
VIII. Esteve bem o Tribunal "a quo” ao decidir como decidiu e não se vislumbra qualquer obscuridade, muito menos contradição ou nulidade da decisão. A sessão de julgamento foi de tal forma elucidativa do desacerto dos argumentos do R., quer por via das próprias declarações do R., titubeantes e em tom de embaraço, quer, por outro lado, por via das declarações das testemunhas dos AA., transparentes, coerentes e sem hesitações.
IX. O R. recorrente vem afirmar que o Tribunal "a quo” deveria ter decidido que a causa de pedir é a nulidade do registo e não o cancelamento do registo, que foi o que foi decidido. Refere "ad nauseam” que o Tribunal se eximiu de se pronunciar sobre a nulidade porque neste caso a contenda seria subsumível no art.º 291.º do Código Civil e 16.º do Código do Registo Predial.
X. Esteve bem o Tribunal "a quo” ao afirmar como afirmou, na fundamentação, que o que os AA. peticionam - o cancelamento das inscrições a favor do Réu - e que isso não consubstancia uma nulidade ou pedido de declaração de nulidade do registo, e não o fez sem antes citar um Acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça que respalda a posição assumida e que é, quanto a isso, de uma incontestável transparência (processo n.º 447/08.4TBCBR.C1.S1).
XI. E, saliente-se, mesmo que não fosse o cancelamento nos termos decididos pelo Tribunal "a quo” o R. teria que provar ser terceiro de boa-fé, o que, convenhamos, atento o seu comportamento constitui tarefa assaz impossível.
XII. Para a densificação do conceito de boa-fé avulta a necessidade de esta ser sem culpa, para isso socorrem-nos do n.º 2 do art.º 487.º do Código Civil que a equipara à diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso. Ora, dúvidas não há de que o R. sabia desde há muito que o prédio estava a ser cultivado pelo Sr. SH (rendeiro dos AA. desde 1981) e também sabia que antes era cultivado pelos sogros e pais dos AA. respectivamente, até porque, convenhamos, a ilha Graciosa tem cerca de 4300 habitantes e o R. é daquela freguesia e todos passam na canada do Sumidouro com elevada frequência.
XIII. Desde que há memória nunca ninguém contestou ou pôs em causa a propriedade e a posse, exercida pelos AA. e seus antepassados, direta ou por interposta pessoa sobre a totalidade do prédio em crise nos autos.
Assim, por tudo quanto se encontra exposto, e ressalvando o devido respeito por melhor e douta opinião de V Exas., deverão improceder todas as conclusões do Recorrente, o que desde já se alega e requer para todos os efeitos legais, só assim se fazendo Justiça!”.
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10. O requerimento recursório foi admitido por despacho de 11-10-2024.
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11. Remetidos os autos a este Tribunal de recurso, em 14-10-2024, e inscrito o recurso em tabela para julgamento, foram colhidos os vistos legais.

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2. Questões a decidir:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2 , in fine, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
Em face do exposto, identificam-se as seguintes questões a decidir:
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I) Das invocadas nulidades da sentença:
A) Se a sentença recorrida é nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d). primeira parte, do CPC?
B) Se a sentença recorrida é nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC?
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II) Impugnação da decisão de facto:
C) Se o recurso atinente à impugnação da matéria de facto deve ser rejeitado, por inobservância do disposto no artigo 640.º do CPC?
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III) Impugnação da decisão de direito:
D) Se a decisão recorrida deve ser objeto de revogação?

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3. Fundamentação de facto:

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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1. Em 8 de Março de 1901 o imóvel sito na Terra (…), freguesia e concelho de Santa Cruz da Graciosa, estava descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz da Graciosa, sob. o n.º (…)14, do livro B (…), com a área de 113,13 ares.
2. Da escritura celebrada em 13.04.1918, no Cartório Notarial de Santa Cruz da Graciosa, lavrada no livro (…), fl. 47, consta:
“Que, por legitimo titulo, sua mãe e constituinte MF é senhora e possuidora do domínio direto de foro anual de quinhentos quarenta e quatro litros de trigo de que são enfiteutas os segundos outorgantes MJC e sua mulher MC imposto no prédio descrito sob número cinco mil e catorze no livro B. décimo quinto da conservatória desta comarca o qual se compõe de cento e treze ares e treze centiares, ou o que medir, de terra lavradia, mato e pomar, com uma casa de morada térrea, telhada, cozinha e alpendres no dito lugar da Terra (…) desta freguesia de Santa Cruz (...); Que nos termos que a lei lhe permite pretende o segundo outorgante dito enfiteuta remi-lo, pelo que ele outorgante VA em nome da sua dita mãe a constituinte ajustou vender-lhe pela quantia de seiscentos escudos, moeda insula, compreendendo o respetivo laudémio de quarentena. Que o dito MJC já pagou a devida contribuição de registo por título oneroso a qual foi liquidada sobre a mencionada quantia, tendo efetuado o pagamento na Tesouraria da Fazenda Pública deste concelho de Santa Cruz no dia de hoje, treze de abril, e pelo conhecimento número trezentos sessenta e seis (...).
Pelos segundos outorgantes ditos MJC e sua mulher MC foi dito: Que do seu acima mencionado e confrontado prédio descrito na conservatória desta comarca sob número (…)catorze no livro B. (…), situado no referido lugar da Terra (…) desta freguesia de Santa Cruz, agora livre e alodial em vista da compra que acabaram de fazer do respetivo domínio direto, ajustaram vender ao terceiro outorgante AAB quarenta e cinco ares e noventa e oito centiares de terra lavradia, em domínio pleno, a confrontar pelo norte com terra de SM, e SJ, pelo sul com terra de SA, e outro e pelo nascente e poente com restante propriedade de sessenta e sete ares e quinze centiares (...) que fica pertencendo a eles outorgantes vendedores.” (conforme certidão exarada pela Biblioteca Pública e Arquivo Regional … do livro (…) E do notário da ilha da Graciosa, … a fls. 47 a 51, ref. Citius (…)93, que aqui se dá por integralmente reproduzida).
3. Nesta mesma escritura, MJC e esposa MC declararam constituir servidão de pé e carro sobre a parte do prédio, de quarenta de cinco ares e noventa e oito centiares, que declararam vender a AAB.
4. Ainda pela escritura celebrada em 13.04.1918 MJC e esposa MC declararam “Que neste ato receberam por empréstimo da mão do quarto outorgante BSC a quantia de duzentos escudos, em moeda insulana, corrente nesta ilha, que contaram e acharam certa (...) Que para garantir estes pagamentos de capital, juros e todas as despesas que o credor fizer por causa deste contrato hipotecam os seus seguintes dois prédios, livres e alodiais, situados no dito lugar da terra (…) desta freguesia de Santa Cruz, a saber: Casa de morada com cozinha térreas, telhadas, alpendres e redutos e adjunto dezanove ares e trinta e seis centiares, ou o que medir de terra lavradia, , confrontando pelo norte com terra de SJ, pelo sul com terra de BH, pelo nascente com caminho público e pelo _poente com terreno _por eles outorgantes hoje vendido ao terceiro outorgante AAB; Segundo — Quarenta e sete ares e setenta e nove centiares, ou o que medir, de terra lavradia, mato e pomar a confrontar pelo norte com mato de SJ, pelo sul com mato de SA, pelo nascente com terreno por eles outorgantes hoje vendido ao terceiro outorgante AAB e pelo poente com mato de MIC;
Que estes dois hipotecados _prédios, com o terreno já acima confrontado e vendido ao terceiro outorgante AAB constituem o prédio descrito sob (…) e catorze no livro B. (…) da conservatória desta comarca” (Sublinhado nosso - conforme certidão exarada pela Biblioteca Pública e Arquivo Regional … (…) E do notário da ilha da Graciosa, … a fls. 47 a 51, ref. Citius (…)93, que aqui se dá por integralmente reproduzida).
5. A hipoteca mencionada em 4) foi inscrita para o qual foi lavrada a descrição (…)08, do livro B(…) para o prédio correspondente a casa de morada com cozinha térreas, telhadas, alpendres e redutos e adjunto dezanove ares e trinta e seis centiares e a descrição (…)09, do livro B(…) correspondente ao prédio de terra lavradia, mato e pomar de quarenta e sete ares e setenta e nove centiares.
6. As descrições (…)08 e (…)09 resultaram da desanexação da referida (…)14.
7. O aludido prédio ficou divido nas descrições (…)08, (…)09 e (…)14.
8. A descrição (…)14 passou a corresponder ao prédio comprado por AAB, avô materno da A.
9. A parte vendida à AAB, avô materno da A., ficava entre o mato e o terreno que servia de quintal da casa que foi propriedade de MJC (pasto).
10. Da escritura celebrada em 08.03.1957, no livro n.º (…), fls. 49, no Cartório Notarial de Santa Cruz da Graciosa, consta que: “compareceram como outorgantes:
Primeiros: FC, trabalhador agrícola e sua mulher BS, doméstica, moradores nesta vila de Santa Cruz, deste concelho e naturais da freguesia de Santa Cruz, deste concelho; (…), trabalhador agrícola, natural da freguesia de Santa Cruz e sua mulher LZ, doméstica, natural da freguesia de Praia (São Mateus); moradores na Lagoa, dita freguesia de Praia (São Mateus); CJ, trabalhador agrícola, natural da dita freguesia de Santa Cruz e sua mulher SA, doméstica, moradores no lugar do ..., dita freguesia de Santa Cruz, donde são naturais; ST, trabalhador agrícola e sua mulher CF, doméstica, moradores no dito lugar do ..., freguesia de Santa Cruz; MAC, viúva, doméstica, moradora no lugar do ... e natural da mesma freguesia de Santa Cruz; MC, trabalhador agrícola e sua mulher AM, doméstica, moradores no dito lugar do ..., naturais da dita freguesia de Santa Cruz.
Segundo: CM, proprietário, casado, morador no dito lugar do ... e natural da freguesia de Guadalupe. (...) pelos primeiros outorgantes, foi dito: Que são donos e compossuidores do direito e acção a quartos quintas _partes de quarenta e oito ares e quarenta centiares ou o que medir de um terreno inculto, sito na Terra (…), freguesia de Santa Cruz, a confrontar de norte com CJ, do sul com EC e outros, do nascente com o segundo outorgante CM e do poente com herdeiros de MI, inscrito na respectiva matriz sob parte do artigo rústico (…) trinta e quatro e que tem o valor matricial de mil cento e trinta e quatro escudos, e se encontra descrito na Conservatória do Conservatória do Registo Civil/ Predial/ Comercial/ Cartório Notarial de Santa Cruz da Graciosa registo Predial deste concelho de Santa Cruz, sob o número (…) e nove a folhas quarenta e três do Livro B (…). Que pela presente escritura vendem ao segundo outorgante o referido direito e acção, com todas as suas pertenças, servidões e acessões e livre como se encontra de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades. Que esta venda a fazem .pelo preço de seis mil escudos que já receberam do comprador e de que lhe dão a correspondente quitação, pelo que lhe transferem todo do domínio, direito e posse que até aqui tem tido ao direito e acção nos termos de direito” (conforme certidão do Cartório Notarial de Santa Cruz da Graciosa, livro n.º (…), fls. 49, ref. Citius (…)11 que aqui se dá por integralmente reproduzida).
11. O que CM declarou comprar correspondia a parte de terra lavradia, mato e pomar.
12. O prédio sito na Terra (…), inscrito na matriz sob o artigo (…)34 corresponde a realidade fáctica das antigas descrições (…)14 e (…)09.
13. Até finais de 2020 constava da caderneta predial rústica do imóvel com artigo matricial (…)34 MJC como titular de 1/20, CM como titular de 8/20 e CP como titular de 11/20.
14. A 29.10.2020, foi deferido pela Direção de Finanças de Angra do Heroísmo, Serviço de Finanças de Santa Cruz da Graciosa, o averbamento no nome da A. O direito e ação 9/20 do artigo matricial rústico (…)34, (conforme Despacho junto como doc. 15 da petição inicial, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido).
15. Em janeiro de 2021 passou a constar da caderneta predial rústica do imóvel com artigo (…)34 CM como titular de 9/20 e CP como titular de 11/20.
16. Por escritura pública celebrada em 03.07.2003, MAL declarou vender ao R., e este declarou comprar, 1/20 avos de noventa e seis ares e oitenta e dois centiares de terra do imóvel sito na Terra (…), Santa Cruz da Graciosa, inscrito na matriz sob o artigo (…)34 por 125€ (conforme escritura pública, doc. 9 da petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
17. Em 16.07.2013, CL, na qualidade de procurador de MIMC, MAC, RC, RMC, SC, EC declarou vender ao R., e este declarou comprar, “um meio do seguinte imóvel: prédio rústico com nove mil seiscentos e oitenta e dois meros quadrados de terra e pico, sito na Terra (…), freguesia e concelho de Santa Cruz da Graciosa, inscrito na matriz sob um meio do artigo (…)34” por 100€ (conforme escritura pública, junta como doc. 10 da petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
18. Nas escrituras referidas em [16 e – corrigindo-se manifesto lapso de escrita] 17, o imóvel não foi identificado como sendo o descrito sob o n.º (…)08, mas pela ficha (…)19 de 26.10.1993, Santa Cruz da Graciosa.
19. A (…)19 foi aberta com base na escritura de habilitação e relação de bens de EC.
20. Se encontra registado a favor da A. a quota de 764/787, por partilha e sucessão hereditária do prédio rústico situado na Terra (…), inscrito na matriz sob o artigo (…)34.
21. A quota de 764/787 do prédio rústico situado na Terra (…), inscrito na matriz sob o artigo (…)34 foi adjudicada à A. na partilha por óbito de sua mãe MCB por escritura de habilitação e partilha celebrada em 25.09.1994.
22. A A. fez um pedido de correção da quota parte do prédio rústico situado na Terra (…), inscrito na matriz sob o artigo (…)34 que foi parcialmente indeferido (despacho 10/2020 do Serviço de Finanças de Santa Cruz da Graciosa doc. 15 junto com a PI).
23. O pasto do prédio rústico situado na Terra (…), inscrito na matriz sob o artigo (…)34, há mais de 30 anos é arrendado por SH.
24. O arrendatário SH pagava a renda ao pai da A. e, após o seu óbito, continua a pagar à A.
25. Em finais de 2020, o R., após 17 e 7 anos, respetivamente, das suas compras, dirigiu- se a SH, rendeiro do imóvel, dizendo ser o seu dono, o que SH não acreditou e continuou pagando a renda à A.
26. Ora, todas as pessoas que passaram e passam nomeadamente o R. no caminho do Sumidouro viram os avós maternos da A. e depois os pais dela e a família, nomeadamente os cunhados, cultivarem o pasto, semeando neles milho e apascentando nele os seus animais e vigiando todo o terreno, incluindo o mato, pelo menos desde 1957.
27. Tal fizeram sempre publicamente, sem violência, de boa-fé e com continuidade como seus proprietários, durante mais de 20 anos, qualidade que toda a gente sempre lhes reconheceu.
28. A área total do prédio rústico descrito na matriz sob o artigo (…)34 é de 11.719,65m2 e confronta pelo Norte com herdeiros de JCE, Sul com a A. e outros, Nascente com o caminho do Sumidouro e com o R., e Poente com herdeiros de MMR.
29. A área do pasto corresponde a 5.860.65 m2 e a área do mato corresponde a 5.859m2.

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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
A. O prédio identificado em 1) tem a sua área correta é 12.749,65 m2, sendo certo que a generalidade das pessoas da ilha conhecia as áreas dos imóveis rústicos em alqueires, quartas e maquias.
B. A Matriz está errada pois o prédio não foi inscrito em 1936.
C. Um quinto do artigo corresponderia ao prédio da descrição (…)08 que os herdeiros do dito MJC venderam, em partes iguais, a JCT e EC, já falecidos.
D. Ninguém informou à A. das projetadas vendas ao R.
E. Devido à conversa do R. com o rendeiro, os A.A. procuraram documentação e tomaram conhecimento da dita escritura de 1918.
F. O R. sabia perfeitamente que os seus vendedores tinham igual área de terreno, que a parte que primeiro comprou (1/20 do artigo) é que confrontava com o prédio da A.

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4. Fundamentação de Direito:

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I) Das invocadas nulidades da sentença:

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A) Se a sentença recorrida é nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), primeira parte, do CPC?
Conclui o recorrente – conclusões I a III das alegações de recurso – que:
“I- Resulta da douta sentença, ora em crise, que a invocação do regime previsto no artigo 291º do código civil não pode ser considerado, na medida em que a ação proposta pelo autor não resulta no pedido de nulidade do registo a favor do réu, mas sim no cancelamento da inscrição a favor do réu.
II- Assinala-se obscuridade na decisão, que neste primeiro momento se identifica no esforço de afastar o regime do artigo 291º do Código Civil, com opção que se afasta à letra da lei, em especial ao previsto no artigo 16º do Código de Registo Predial,
III- e pináculo da decisão de se auto eximir ao dever de pronuncia e apreciação do alegado pelo réu, determinando a sentença à nulidade prevista na primeira parte da alínea d) do número 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil”.
Os autores concluíram no sentido de que a invocação da contraparte deverá improceder.
O Tribunal recorrido pronunciou-se no sentido de não ocorrer a nulidade invocada, nos termos a que se reporta o artigo 641.º, n.º 1, do CPC (cfr. despacho de 11-10-2024).
Vejamos se ocorre a nulidade a que se refere a mencionada primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (sendo certo que, no decorrer da motivação, o recorrente alude a outra alínea do n.º 1 do artigo 615.º - a alínea c) – , bem como, à “contradição entre os fundamentos de facto e de direito, respetiva oposição com a decisão” , à pronúncia “sobre questões que não devia tomar conhecimento por serem dadas como assentes” – questões que, contudo, ulteriormente, não transporta para as conclusões recursórias, as quais, como se viu, delimitam o objeto de cognição do Tribunal, razão pela qual, se conhecerá das nulidades vertidas em sede de conclusões do recurso):
Conforme decorre da al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a sentença padecerá de nulidade quando: “(…) d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; (…)”.
Vejamos se o Tribunal incorreu em omissão da pronúncia devida, não conhecendo de questão de que devesse tomar conhecimento, sabendo-se que, todavia, é “frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou e que a racionalidade não consegue explicar, desviando-se do verdadeiro objecto do recurso que deve ser centrado nos aspectos de ordem substancial. Com não menos frequência a arguição de nulidades da sentença acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam tais nulidades” (assim, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, p. 132).
Liminarmente, importa evidenciar que, apenas existirá nulidade da sentença por omissão (ou excesso) de pronúncia com referência às questões objeto do processo, não com atinência a todo e qualquer argumento esgrimido pela parte.
A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronúncia) há-de, assim, resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, preceito do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas, cuja decisão, esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A “questão a decidir” pelo julgador estará diretamente ligada ao pedido e à respetiva causa de pedir, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência da sua pretensão, ou a pronunciar-se sobre todas as considerações tecidas para esse efeito. O que o juiz deve fazer é pronunciar-se sobre a questão que se suscita, apreciando-a e decidindo-a, segundo a solução de direito que julga correta.
De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, “o juiz resolve todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” , pelo que, não se verifica omissão de pronúncia quando o não conhecimento de questões fique prejudicado pela solução dada a outras, sendo certo que, o dever de pronúncia obrigatória é delimitado pelo pedido e causa de pedir e pela matéria de exceção.
“O dever imposto no nº 2, do artigo 608º diz respeito ao conhecimento, na sentença, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e da causa de pedir apresentadas pelo autor (ou, eventualmente, pelo réu reconvinte) suscitam. Só estas questões é que são essenciais à solução do pleito e já não os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos. Para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão posta pelas partes e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir e a questão resolvida pelo juiz” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15-03-2018, Processo nº 1453/17.3T8BRG.G1, relatora EUGÉNIA CUNHA).
Assim, “importa distinguir entre os casos em que o tribunal deixa de pronunciar-se efetivamente sobre questão que devia apreciar e aqueles em que esse tribunal invoca razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção, sendo coisas diferentes deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte, por não ter o tribunal de esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devam ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-03-2019, Processo 226/16.5T8MAI-E.P1, relator NELSON FERNANDES).
Na realidade, como se referiu no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-09-2011 (P.º n.º 480/09.9JALRA.C1, relator ORLANDO GONÇALVES): “1.- A nulidade de sentença por omissão de pronúncia refere-se a questões e não a razões ou argumentos invocados pela parte ou pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista. 2.- O que importa é que o tribunal decida a questão colocada e não que tenha que apreciar todos os fundamentos ou razões que foram invocados para suporte dessa pretensão”.
Se a decisão não faz referência a todos os argumentos invocados pela parte, tal não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, sendo certo que a decisão tomada quanto à resolução da questão poderá muitas vezes tornar inútil o conhecimento dos argumentos ou considerações expendidas, designadamente por opostos, irrelevantes ou prejudicados em face da solução adotada.
Conclui-se – como se fez no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-05-2019 (Processo 1211/09.9GACSC-A.L2-3, relatora MARIA DA GRAÇA SANTOS SILVA) - que: “A omissão de pronúncia é um vício que ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre essas questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer argumento aduzido. O vocábulo legal - “questões” - não abrange todos os argumentos invocados pelas partes. Reporta-se apenas às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, às concretas controvérsias centrais a dirimir”.
No caso em apreço, o recorrente considera que a decisão recorrida se eximiu do dever de pronúncia sobre o alegado pelo réu.
Contudo, ao invés do invocado pelo apelante, assim não concluímos.
O dever de decisão do Tribunal recorrido foi devida e cabalmente observado, tendo o Tribunal de 1.ª instância emitido, na decisão recorrida, a pronúncia que lhe cabia efetuar sobre as questões que se encontravam colocadas.
Veja-se que, em sede de despacho saneador, o Tribunal recorrido assinalou como objeto do litígio, o seguinte: “Constitui objeto do presente litígio indagar se aos AA deve ser reconhecido o direito de propriedade sobre o imóvel correspondente às antigas descrições (…)09 e (…)14, referenciadas a 1918 - porque herdado de seus pais e ainda porque o adquiriram por usucapião e canceladas as inscrições aí averbadas a favor do R.
Mais importa apurar os efeitos do eventual cancelamento das inscrições averbadas a favor do R, nomeadamente, quanto à invocada (in)oponibilidade prevista no artigo 291.º do CC”.
Nesse âmbito, o Tribunal recorrido enunciou os temas da prova prolatados no despacho de 16-05-2023, que não mereceram alguma reclamação.
E, se atentarmos aos termos da decisão recorrida nela se enunciaram como questões a decidir, as seguintes:
“1. O direito de propriedade do AA. sobre a totalidade do prédio rústico com artigo matricial n.º (…)34 (pasto e mato) e a correspondência do prédio às antigas descrições (…)09 e (…)14.
2. O cancelamento das inscrições a favor do R. que incidem sobre 1/2 do respetivo prédio”.
Na fundamentação de direito, o Tribunal expendeu a motivação jurídica sobre a causa, aplicando o Direito aos factos apurados, tendo enunciado, designadamente, a respeito da questão da segunda questão, as seguintes considerações:
“(…) Assim sendo, aos Autores cabe o direito, enquanto proprietários, de exigir o reconhecimento do seu direito de propriedade bem como de exigir que os demais se abstenham da prática de quaisquer atos e factos que ponha em causa ou limitem o exercício pleno do seu direito de propriedade (eficácia erga omnes), pelo que deve ser julgado procedente o pedido de reconhecimento da propriedade peticionado pelos Autores.
Face ao reconhecimento do direito de propriedade dos Autores sob o aludido prédio rústico cumpre, em consequência, determinar o cancelamento do registo de 1/2 a favor do réu em relação ao aludido prédio por ser esta uma consequência do próprio reconhecimento do direito de propriedade (nesse sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.11.2011, processo n.º 447/08.4TBCBR.C1.S1).
Cumpre ainda referir que, apesar de o Réu invocar o regime previsto no artigo 291.º do Código Civil não pode o mesmo ser considerado na medida em que a ação proposta pelos Autores não se consubstancia como uma ação de declaração da nulidade do registo. O que os Autores peticionam - o cancelamento das inscrições a favor do Réu - não consubstancia uma nulidade ou pedido de declaração de nulidade do registo, mas, antes, um efeito prático do reconhecimento da aludida propriedade.
Por outro lado, conforme suprarreferido, o instituto da usucapião sobrepõe-se à presunção derivada do registo.
Assim, não cumpre apreciar tal argumento invocado pelo Réu (…)”.
Assim, tendo o Tribunal recorrido emitido decisão sobre as questões a decidir e - de acordo com o que também entendeu - considerou afastada a aplicação do argumento de oponibilidade, com fundamento no regime previsto no artigo 291.º do CC, não se verifica que lhe coubesse emitir alguma pronúncia a este respeito que não tenha efetuado (sendo que, como reconhece o apelante, o Tribunal recorrido afastou a aplicação de um tal regime jurídico).
Em face do exposto conclui-se: Não ocorre nulidade da sentença recorrida, por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, se o Tribunal, apreciou todas as questões que lhe incumbia apreciar, em conformidade com o disposto no artigo 608.º do CPC e, no âmbito de tal apreciação, veio a concluir ficar prejudicada a consideração de instituto jurídico convocado pelo réu.
Em face do exposto, improcede a nulidade arguida, com fundamento no disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), primeira parte, do CPC.

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B) Se a sentença recorrida é nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC?
Conclui o apelante réu, ainda, que a sentença recorrida é nula, uma vez que a decisão recorrida não considerou o regime jurídico do artigo 291.º do CC, “(…) com a “agravante” de, nem sequer especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão de afastar tal regime, citando-se a decisão, "não cumpre apreciar tal argumento invocado pelo réu”. O que se estranha, pois, os autores alegam, abundantemente, na causa de pedir, a existência “de nulidade de carácter substantivo, consubstanciada na referida venda non domino, razão pela qual será através do art.º º 291º do C Civil que se encontrará a solução.”
Razão pela qual se vem arguir a nulidade da sentença nos termos do previsto no artigo 615º, número 1 alínea b) do código de processo civil”.
Vejamos:
A obrigação de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, constante do artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC é reflexo do dever de fundamentação das decisões imposto pelo n.º 1 do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa (CRP, nos termos do qual “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei” ) e ínsito no comando vertido no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e também, regulamentado, na lei ordinária, pelo artigo 154.º do CPC.
Como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra, 2007, p. 70) a fundamentação tem uma dupla função de “carácter subjectivo” , de garantia do direito ao recurso e controlo da correção material e formal das decisões pelos seus destinatários, e uma função de “carácter objectivo” , de pacificação social, legitimidade e auto-controlo das decisões.
Esta exigência de fundamentação das decisões judiciais bem se compreende, na medida em que, as decisões dos juízes têm que ter na sua base um raciocínio lógico e argumentativo que possa ser entendido pelos destinatários da decisão, sob pena de não se fazer justiça.
Resultava já do CPC de 1961 (cfr. artigos 659º, n.º 3 e 655º) e resulta, ainda mais vincadamente, no CPC em vigor (cfr. artigo 607º, n.º 4), que a fundamentação de facto da sentença não deve limitar-se à mera indicação dos meios de prova em que assentou o juízo probatório sobre cada facto, devendo revelar o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo juiz ao decidir como decidiu sobre todos os pontos da matéria de facto, de modo a conhecerem-se as razões por que se decidiu no sentido decidido, e não, noutro.
O exame da prova deve ser (e só pode ser) um exame crítico, no qual o julgador procede à análise ponderada de todos os meios de prova realizados, da sua credibilidade, estabelece as ligações possíveis destes meios entre si, submete-os à luz dos princípios lógicos e das regras da experiência para poder formar, e expressar, a sua convicção e, em face disso, decidir.
Na realidade, embora o julgador aprecie livremente as provas produzidas segundo a sua prudente convicção (princípio que não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos, ou que estejam plenamente provados – cfr. artigo 607.º, n.º 5 do CPC), não está desonerado de fundamentar as razões pelas quais se convenceu da veracidade de determinados factos, ou da desconsideração de outra factualidade, de modo a permitir o controlo, quer pelas partes quer pelos tribunais superiores, do acerto da respetiva fundamentação, bem como, possibilitando às partes a arguição de eventuais nulidades resultantes da eventual oposição entre os fundamentos e a decisão ou de omissão da especificação desses fundamentos.
Assim, todas as decisões judiciais, quer sejam sentenças quer sejam despachos, têm que ser sempre fundamentadas, de facto e de direito.
No entanto, e em princípio, os despachos não exigem o mesmo grau de fundamentação que é exigido para uma sentença.
Defendem Jorge Miranda e Rui Medeiros (ob. cit., p. 72 e 73) que a fundamentação das decisões judiciais, além de ser expressa, clara, coerente e suficiente, deve também ser adequada à importância e circunstância da decisão. Quer isto dizer que as decisões judiciais, ainda que tenham que ser sempre fundamentadas, podem sê-lo de forma mais ou menos exigente (de acordo com critérios de razoabilidade) consoante a função dessa mesma decisão.
Se o julgador o não fizer, a sentença será nula por falta de fundamentação.
De todo o modo, a falta de fundamentação só acarreta a nulidade da sentença quando se apresente total.
Ou seja: O vício do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC só ocorrerá quando houver falta absoluta, ou total, de fundamentos ou de motivação (de facto ou de direito em que assenta a decisão) e, não já, quando essa fundamentação ou motivação for deficiente, insuficiente, medíocre ou até errada (assim, entre muitos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-06-2023, Pº 18905/19.3T8LSB.L1.S1, rel. DOMINGOS JOSÉ DE MORAIS).
Se a decisão for apenas insuficiente ou medíocre ou errada, isso poderá afetar o valor doutrinal da mesma, sujeitando-a ao risco de ser revogada em recurso, verificando o erro ou desacerto do julgamento, mas tal situação não produz a nulidade da decisão (vd., neste sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil, Vol. 2.º, 3.ª. Ed., Almedina, 2017, pp. 735-736 e a generalidade da jurisprudência, entre outros: os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02-06-2016, processo 781/11.6TBMTJ.L1.S1, rel. FERNANDA ISABEL PEREIRA, e de 15-05-2019, processo 835/15.0T8LRA.C3.S1, rel. RIBEIRO CARDOSO; do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-03-2018, processo 908/17.4T8FNC-B.L1.8, rel. TERESA PRAZERES PAIS; os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-11-2017, Processo 3309/16.8T8VIS-A.C1, rel. ISAÍAS PÁDUA; de 05-06-2018, Processo 4084/14.6T8CBR-D.C1, rel. ISAÍAS PÁDUA; os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 14-03-2016, Processo 171/15.1T8AVR.P1, rel. PAULA MARIA ROBERTO, e de 11-01-2018, Processo 2685/15.4T8MTS.P1, rel. FILIPE CAROÇO).
Ocorre falta de fundamentação, geradora de nulidade, se a mesma é inexistente, mas também, se a mesma, pela sua formulação não permite apreender qual o processo lógico seguido pelo julgador na formação da sua convicção, não sendo possível aferir as razões que levaram a decidir de um determinado modo, colocando em crise a construção do silogismo judiciário e, não, o erro de julgamento.
No caso em apreço, considera o réu que o Tribunal recorrido incorreu no vício a que se reporta a alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, por – em seu entender – o Tribunal não ter especificado os fundamentos de facto e de direito que justificam o afastamento do regime do artigo 291.º do CC.
Para além de ter procedido à especificação dos fundamentos de facto e de direito na sentença recorrida, certo é que, ao invés do invocado pelo apelante, o Tribunal recorrido enunciou, com objetividade e clareza, qual a razão da não consideração, para o caso em apreço, do regime resultante do artigo 291.º do CC. Veja-se o seguinte trecho, já acima transcrito:
“(…) Face ao reconhecimento do direito de propriedade dos Autores sob o aludido prédio rústico cumpre, em consequência, determinar o cancelamento do registo de 1/2 a favor do réu em relação ao aludido prédio por ser esta uma consequência do próprio reconhecimento do direito de propriedade (nesse sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.11.2011, processo n.º 447/08.4TBCBR.C1.S1).
Cumpre ainda referir que, apesar de o Réu invocar o regime previsto no artigo 291.º do Código Civil não pode o mesmo ser considerado na medida em que a ação proposta pelos Autores não se consubstancia como uma ação de declaração da nulidade do registo . O que os Autores peticionam - o cancelamento das inscrições a favor do Réu - não consubstancia uma nulidade ou pedido de declaração de nulidade do registo , mas, antes, um efeito prático do reconhecimento da aludida propriedade.
Por outro lado, conforme suprarreferido, o instituto da usucapião sobrepõe-se à presunção derivada do registo.
Assim, não cumpre apreciar tal argumento invocado pelo Réu (…)”.
Conforme resulta dos trechos ora sublinhados, o Tribunal recorrido faz assentar a decisão de não aplicação do artigo 291.º do CC – sendo esse o sentido da última frase ora extratada da decisão recorrida – em duas circunstâncias: A de que a ação proposta não visa a declaração da nulidade do registo, entendendo o Tribunal o pedido do cancelamento do registo a favor do réu, como uma decorrência do reconhecimento da propriedade a favor dos autores (citando a jurisprudência que invocou); e a de que o reconhecimento do direito de propriedade a favor dos autores, com base em usucapião (modo de aquisição originária da propriedade), suplanta a questão da titularidade registral a favor do réu, tornando inconsequente ou prejudicado o argumento fundado no aludido instituto a que se reporta o artigo 291.º do CC.
O recorrente pode não concordar com a fundamentação exarada, mas, esta, de facto, encontra-se presente.
Com efeito, independentemente de qualquer outra apreciação, como decorre das considerações supra expendidas, encontram-se na decisão recorrida os fundamentos de facto e de direito em que assenta a decisão tomada.
Assim: Encontrando-se presente na decisão recorrida a fundamentação em que assentou o decidido não se verifica - sob qualquer perspetiva de acordo com o invocado pelo réu recorrente – ocorrer o vício de nulidade assente na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
A nulidade arguida com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC é, pois, improcedente.

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II) Impugnação da decisão de facto:

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C) Se o recurso atinente à impugnação da matéria de facto deve ser rejeitado, por inobservância do disposto no artigo 640.º do CPC?
No âmbito das alegações de recurso, o recorrente insurge-se contra a prova de determinados factos, que considera terem sido “erradamente considerados provados” (cfr. conclusão XXXIX das alegações do apelante), finalizando por entender resultarem prejudicados “os factos considerados provados de 25 a 28” (cfr. conclusão LX).
Com tal invocação, o recorrente visa colocar em crise a matéria de facto selecionada pelo Tribunal recorrido.
Vejamos:
Prescreve o artigo 639.º do CPC – sobre o ónus de alegar e de formular conclusões - nos seguintes termos:
“1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.
5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.”.
Por sua vez, dispõe o artigo 640.º do CPC que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efetivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO, em www.dgsi.pt , respeitando a esta base de dados todos os acórdãos infra citados, salvo indicação diversa).
Os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, rel. ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art.º 639º, nº 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, rel. MANUEL BARGADO).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do art.º 640.º (de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, rel. LOPES DO REGO).
O ónus atinente à indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exatidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, rel. HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, rel. PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, rel. LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, rel. SEBASTIÃO PÓVOAS).
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art.º 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, rel. MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, rel. GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso, por princípio, devem ser identificados os pontos de facto que são objeto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, rel. TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, rel. MÁRIO BELO MORGADO). Contudo, firmou-se jurisprudência no sentido de que “nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa” (assim, o Acórdão do STJ n.º 12/2023, D.R, 1.ª Série, n.º 220, p. 44 e ss.).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Pº 6095/15T8BRG.G1, rel. PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, rel. TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Pº 6871/14.6T8CBR.C1, rel. MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
No caso dos autos, o recorrente - na motivação das alegações do recurso que apresentou – teceu considerações sobre diversa factualidade que entendeu ter sido erradamente apreciada pelo Tribunal recorrido.
E, como se viu, indica o recorrente que foram incorretamente julgados os factos provados n.ºs. 11, 12 e 24 a 28.
O recorrente indica, também, diversos meios de prova, extratando a respeito dos depoimentos que menciona, os segmentos que considera relevantes.
Contudo, a impugnação em questão, embora significando uma declaração de vontade do apelante no sentido da impugnação da matéria de facto aquilatada pelo Tribunal recorrido, por não observar o ónus de impugnação consignado na alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, não passa de “mera manifestação de inconsequente inconformismo” , sobre o resultado probatório alcançado pelo Tribunal.
Conforme refere Abrantes Geraldes, (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pp. 199-200) impõe-se a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto” , designadamente quando se verifique “(…) Falta de especificação (…) dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; (…) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); (…) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação (…)” , concluindo que, a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” .
De facto, não resultando, nem das conclusões, nem da motivação da apelação, qual a decisão alternativa que, em concreto, devesse ser proferida sobre os pontos de facto indicados – relativamente aos quais o apelante considera ter ocorrido errado julgamento -, deve ser rejeitado o recurso referente à impugnação da matéria de facto, por inobservância do ónus de impugnação contido na alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
Não se pode considerar que o apelante tenha, de facto, tomado posição concreta sobre a factualidade que pretendeu impugnar, não assinalando qual a decisão que, em alternativa à tomada pelo Tribunal, deveria ter sido proferida. Isso não deriva da mera imputação de erro no julgamento efetuado, nem, igualmente, da consideração de o apelante entender “prejudicados” determinados factos.
O supra exposto conduz, inelutavelmente, a que deva ser rejeitado o recurso, nos segmentos em que visou colocar em crise a matéria de facto aquilatada pelo Tribunal recorrido, circunscrevendo-se o objeto do recurso à apreciação da impugnação da matéria de direito deduzida na decisão recorrida.

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II) Impugnação da decisão de direito:

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D) Se a decisão recorrida deve ser objeto de revogação?
Na fundamentação de direito da sentença recorrida, o Tribunal recorrido procedeu à apreciação da titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão nos autos, tecendo considerações genéricas sobre a natureza da presente ação (que considerou de simples apreciação positiva, por contraposição a uma ação de reivindicação), bem como, sobre as formas de aquisição do direito real de propriedade e a correlação entre a usucapião – forma de aquisição originária de tal direito – e a presunção de titularidade, fundada no registo predial, concluindo que:
“(…) Assim, apesar de as partes beneficiarem da presunção do direito de propriedade sobre parte do prédio identificado, tais presunções apenas dizem respeito aos direitos concretamente inscritos sobre os prédios em causa, sem que de tal facto se permita retirar qual a extensão de cada um deles.
Todavia, conforme referimos supra, a presunção do registo é ilidível mediante prova em contrário. Com efeito, conforme ensina José de Oliveira Ascensão - cf. Direito Civil - Reais, 5.a edição, Coimbra Editora, 2012, p. 382 - «é preciso não esquecer que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião. Esta em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais; vale por si. Por isso, o que se fiou no registo passa à frente dos títulos substantivos existentes, mas nada pode contra a usucapião» (negrito nosso).
(…)
Assim, decorre que a usucapião prevalece sobre a presunção registal ainda que o registo seja anterior ao início daquela posse.
Ora, da forma como ação é configurada pelos Autores, estes invocam a aquisição quer por via da herança do pai da Autora quer por via da usucapião pelo que cumpre verificar se estão preenchidos os requisitos de tal instituto na medida em que, a verificar-se, esta se sobrepõe a outras formas de aquisição derivadas”.
E, prosseguindo na análise, o Tribunal recorrido concluiu, a respeito da verificação do instituto da usucapião, que:
“(…) No caso sub judice resultou provado que a realidade fáctica do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo (…)34 corresponde as antigas descrições (…)09 e (…)14.
Resultou ainda que o avô da Autora adquiriu a parte que corresponderia a inscrição (…)14, após o prédio ter sido subdivido pelos então proprietários com as inscrições (…)09 e (…)08.
Por outro lado, em 1957 o pai da Autora - CM - adquiriu 4/5 do prédio rústico com a descrição (…)09 e, por escritura de habilitação e partilha, foi adjudicada à Autora a quota de 764/787 do prédio inscrito sobre o artigo (…)14.
Ora, apenas se discute a parte relativa as inscrições (…)09 e (…)14 (que correspondem ao prédio rústico, uma vez que a inscrição (…)08 sempre foi constituída por uma casa de morada e que não é objeto dos autos).
Ocorre que, desde de que foi adquirida a outra parte do prédio rústico pelo pai da Autora, em 1957, os Autores - pessoalmente e/ou por intermédio de terceiros - utilizaram aquele prédio, plantando, cortando, mantendo os seus animais bem como entendendo que a parte de mato/arvoredo pertencia àquele prédio, ainda que não fosse utilizado. No entanto, sempre foram vistos por todos como donos do referido prédio por ter sido herança dos pais da Autora.
(…)
Mais resultou que os Autores por si e por intermédio da sua cunhada CM, sempre vigiaram o prédio, nomeadamente passando pelo sumidouro ali existente e que as pessoas daquela localidade entendem que o terreno - pasto e mato - é da propriedade dos Autores, como confirmado pela testemunha SH.
(…)
No entanto, se resultou provado que o pasto, há mais de 30 anos, se encontrava arrendado pelo Autores tal demonstra que os Autores exerciam a posse através do arrendatário por este não ser possuidor em nome próprio.
Em suma, resultou provado que, pelo menos desde 1957 - data da aquisição da parte correspondente ao “mato” - a família vem cultivando o pasto, por sua conta e por meio do arrendatário, passando pelo local e vendo todo o terreno - pasto e mato, a vista de todos, sem oposição de ninguém e que, desde 25.09.1994 o prédio foi adjudicado à Autora, passando os Autores a receberem a renda do terreno e a se arrogarem como proprietários do mesmo, verificando-se o corpus da posse.
Apenas em finais de 2020, o aqui Réu arrogou-se proprietário de 1/2 do aludido prédio.
Ora, decorre que desde 1994 até 2020 decorreram 26 anos.
Os Autores, arrogaram-se e atuaram na séria convicção de que eram os legítimos proprietários, possuindo a coisa como se fosse sua pelo que, se encontra preenchido o animus atinente ao direito de propriedade.
Ora, daqui resulta que ficou demonstrada a prática de atos materiais (corpus) bem como o decurso de tempo bastante por forma a poder usucapir - é que no pior dos cenários seriam precisos 20 anos (cfr. artigo 1296º do Código Civil), sendo certo que os Autores exercem a posse do referido imóvel há mais de 20 anos.
Por outro lado, não existiram atos de posse por parte do Réu sob o referido prédio ao longo dos anos”.
E, conclui o Tribunal recorrido, em conformidade, que os autores adquiriram, por usucapião, o aludido prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo (…)34 na área de 11.719,65m2 (que engloba toda extensão do prédio rústico incluindo o pasto e o mato) e, consequentemente, reconheceu os autores como proprietários nos termos peticionados.
Vejamos a pretensão recursória.
Desde logo, insurge-se o apelante contra a decisão de direito proferida, invocando que os autores sustentam a causa de pedir na nulidade do negócio.
Todavia, conforme se assinalou na decisão recorrida, não se vislumbra tal invocação na pretensão formulada pelos autores, pois, de facto, a causa de pedir é sustentada pelos autores - nos termos constantes da petição inicial - na invocação, por um lado, da aquisição do direito de propriedade, de forma derivada e, por outro, na aquisição de tal direito, por usucapião, ou seja, fundando tal direito numa aquisição originária.
Neste sentido, compreendem-se as considerações expendidas pelo Tribunal recorrido, a respeito da não aplicação do regime do artigo 291.º do CC, atenta, desde logo, a demonstração da aquisição da propriedade do terreno, pelos autores, fundada na usucapião.
O artigo 291.º, n.º 1 do CC prevê um dos casos de aquisição tabular, em que ocorre uma situação de aquisição, precedida de um primeiro negócio ferido de nulidade ou anulabilidade por qualquer invalidade substantiva (erro na declaração ou erro-vício, preterição da forma legalmente exigida, entre outras), sendo que, a declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que incida sobre imóveis ou móveis sujeitos a registo não é oponível aos terceiros de boa-fé que hajam adquirido a título oneroso direitos sobre os mesmos bens, desde que o registo da sua aquisição seja anterior ao registo da ação de nulidade ou anulação, ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.
“O artigo 17.º, n.º 2 do Código do Registo Predial prevê outra hipótese de aquisição tabular, a subaquisição com nulidade registal. Segundo esta norma, a declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa-fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da ação de nulidade. Portanto, só nos casos em que a nulidade registal criou uma desconformidade com a realidade substantiva é que a norma é aplicável. A teleologia do artigo 17.º, n.º 2 do CRPr visa proteger um terceiro subadquirente, cuja posição adveio da celebração de um negócio jurídico com o titular inscrito com registo nulo, que não é o titular do direito real na ordem substantiva. A pessoa protegida não é o titular do registo nulo, mas sim o adquirente em negócio concluído com base no registo nulo, ou seja, um subadquirente” (assim, João Miguel Pires Limão, “O efeito atributivo do artigo 291.º do Código Civil Português”, in O Direito 155.º, 2023, vol. II, p. 398).
Mas, independentemente disso, o título para aquisição por usucapião e para se desencadear a posse relevante para efeitos de tal instituto, não tem de possuir os requisitos de validade.
Conforme se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-03-2023 (Pº 55/21.4T8FIG.C1, rel. HELENA MELO): “Uma doação nula por vício de falta de forma escrita, não impossibilita a aquisição por usucapião. A doação verbal, mesmo inválida, potencia o sentido de transferir para o adquirente uma posse em nome próprio. Decorrido o prazo para a usucapião, verificado o animus e o corpus, a propriedade adquire-se, retroagindo ao momento do início da posse” (cfr., também, o Ac. do STJ de 17-06-2021, Pº 5569/16.5T8VIS.C1.S1, rel. TIBÉRIO NUNES DA SILVA e o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-12-2009, Pº 1720/06.1TBTVD-B.L1-8, rel. BRUTO DA COSTA).
“Importa esclarecer, que a existência de título não se confunde com título válido. A compra e venda, a doação, a permuta e o testamento, por exemplo, podem ser inválidos, qualquer que seja o vício que em concreto afecte o negócio jurídico. Desde que o registo do facto jurídico tenha sido feito em conformidade com as disposições do direito registal, existe título registado para efeitos do regime de usucapião, ainda que o facto jurídico seja inválido, e o possuidor pode invocar a usucapião nos termos do art.º 1294.º” (cfr., José Alberto Vieira; Direitos Reais; 3.ª Ed., Almedina, 2020, p. 381).
Vem, ainda, o apelante invocar – reiterando posição já expressa na contestação – que ocorreu preterição do litisconsórcio passivo, culminando na sua ilegitimidade.
Sobre este ponto importa considerar que o Tribunal recorrido já se pronunciou na decisão proferida em 16-05-2023 - sem que se alcance algum vício decisório ou algum errado julgamento - acerca da invocada exceção. Conforme se alude em tal decisão:
“(…) A célebre querela doutrinal e jurisprudencial relativa à legitimidade das partes foi ultrapassada com a previsão do n.º 3 do indicado preceito [artigo 30.º do CPC], segundo a qual “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito de legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Compreende-se por isso que o pressuposto processual em análise é aferido por um critério formal, na medida em que o autor é parte legítima se, atenta a relação jurídica que invoca, surgir nela como sujeito suscetível de beneficiar diretamente do efeito jurídico pretendido, sendo que o réu terá legitimidade passiva se for diretamente prejudicado pela procedência da ação (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, «Código de Processo Civil anotado – Vol. I», Almedina, 2018, p. 59).
A legitimidade processual não se confunde com a legitimidade material, a apreciar aquando da análise do mérito da ação.
A legitimidade processual é aferida nos termos do referido artigo 30.º do CPC em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou. Ou seja, neste particular, não importa saber quem são os verdadeiros titulares da relação material controvertida, sendo despiciendas quaisquer considerações de direito substantivo.
Por seu turno, a legitimidade substantiva ou “ad actum” traduz-se num pressuposto material, na existência do direito na esfera jurídica daquela concreta pessoa, portanto, com implicações ao nível da (im)procedência da ação.
Nesta fase, importa então apreciar se, atenta a configuração da relação jurídica substantiva delineada pelos AA, estes têm interesse em demandar o R e, por sua vez, se o R tem interesse direto em contradizer, independentemente da procedência do pedido por aquele formulado.
No caso dos autos, tal como é configurada a ação pelo A., a legitimidade processual do R advém do facto alegado pelos AA quanto à aquisição (herança) e aos atos possessórios exercidos por eles sobre o imóvel cuja propriedade pretendem ver reconhecida a seu favor com o consequentemente cancelamento do registo averbado a favor do R.
Concluímos assim, independentemente das regras do ónus da prova e dos respetivos temas a definir, que o R. tem interesse direto em contradizer, não carecendo de qualquer outro interveniente ao seu lado, uma vez que, é apenas em relação a ele que os AA pretendem obter o cancelamento do registo subsequente ao prévio reconhecimento da propriedade reivindicada (…)”.
Note-se que o recorrente não impugnou uma tal decisão, nem o vem efetuar agora, limitando-se a reiterar a argumentação que já antes havia expendido a este propósito.
Inexiste motivo para a alteração do decidido a este respeito, cujas considerações são de acolher.
No mais, acolhe-se a fundamentação expendida na decisão recorrida, nomeadamente, no que toca aos efeitos da demonstração da aquisição originária, excludente da possibilidade de tutela – com êxito – da posição do apelante, não se alcançando que a apreciação efetuada na decisão recorrida, em torno das questões de direito conhecidas, tenha violado as disposições normativas invocadas pelo apelante, em particular, as dos artigos 16.º, al. c) e 17.º do Código do Registo Predial, nem as dos artigos 1294º, 1297º, 1265º, 1379º, 1376º e 1406.º CC, ou alguma desconsideração sobre o regime da venda de bens alheios ou sobre a tutela de terceiro adquirente de boa-fé.
Conforme se lê, a dado passo, na decisão recorrida:
“(…) Os Autores, arrogaram-se e atuaram na séria convicção de que eram os legítimos proprietários, possuindo a coisa como se fosse sua pelo que, se encontra preenchido o animus atinente ao direito de propriedade.
Ora, daqui resulta que ficou demonstrada a prática de atos materiais (corpus) bem como o decurso de tempo bastante por forma a poder usucapir - é que no pior dos cenários seriam precisos 20 anos (cfr. artigo 1296º do Código Civil), sendo certo que os Autores exercem a posse do referido imóvel há mais de 20 anos.
Por outro lado, não existiram atos de posse por parte do Réu sob o referido prédio ao longo dos anos.
Desta feita, resta concluir que os Autores adquiriram, por usucapião, o aludido prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo (…)34 na área de 11.719,65m2 (que engloba toda extensão do prédio rústico incluindo o pasto e o mato).
Assim sendo, aos Autores cabe o direito, enquanto proprietários, de exigir o reconhecimento do seu direito de propriedade bem como de exigir que os demais se abstenham da prática de quaisquer atos e factos que ponha em causa ou limitem o exercício pleno do seu direito de propriedade (eficácia erga omnes), pelo que deve ser julgado procedente o pedido de reconhecimento da propriedade peticionado pelos Autores.
(…)
Por outro lado, conforme suprarreferido, o instituto da usucapião sobrepõe-se à presunção derivada do registo. (…) ”.
Excluída se mostra a demonstração de uma situação de composse (sendo que os carateres da posição do apelante não permitem concluir pela existência de um tal direito), que permita sustentar a invocação de “compropriedade”.
Neste sentido, mostra-se inconsequente a invocada “desconsideração da posse a favor do R.”, apenas sucedendo que, no confronto efetivado, os autores lograram demonstrar os factos materiais conducentes ao reconhecimento da aquisição da titularidade do prédio em questão, por usucapião.
Invoca, ainda, o apelante que “a divisão abrange terreno não apto para cultura o que afasta do objeto da usucapião no confronto com as regras da proibição de fracionamento de prédios rústicos (art.º 107º do Decreto n.º 16731 e da Lei n.º 2116), com o artigo 1379º, conjugado com o art.º 1376º CC, esta sanção passou a ser de anulabilidade, tendo voltado a ser a de nulidade com a redação dada ao mesmo artigo 1379º pela Lei nº 111/2015) O que obsta à aquisição originária da parcela de terreno registada a favor do réu, desde logo por corresponder a terreno não agrícola constituído por mato”.
Vejamos:
Dispõe o artigo 1287.º do CC que: “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”.
A usucapião é, assim, uma forma de aquisição originária do direito de propriedade ou de outro direito real de gozo, que assenta na posse desse direito mantida pela mesma ou mesmas pessoas durante um determinado período.
Conforme refere Rui Pinto Duarte (Curso de Direitos Reais; 4.ª ed., revista e aumentada, Principia, 2020, p. 491): “Desta mesma noção resulta que só se podem adquirir por usucapião coisas que já existam como tal e que possam ser adquiridas por outro modo (…)”.
O art.º 1251.º do Código Civil define a posse como sendo o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
Essa posse resulta da combinação de um elemento objetivo – o corpus , que se concretiza através dos atos materiais praticados sobre a coisa – e de um elemento subjetivo – o animus , que se traduz na intenção de o possuidor se comportar como titular do direito real correspondente aos atos praticados.
Só dá origem à usucapião a posse pacífica e pública (cfr. artigos 1297.º e 1300.º, n.º 1, do CC). Se a posse tiver sido obtida com violência ou se se tiver iniciado de modo não cognoscível, os prazos da usucapião só começarão a contar a partir do momento em que cesse a violência ou a posse se torne pública.
Por outro lado, excluem-se da possibilidade de usucapião as servidões não aparentes e os direitos de uso e de habitação, conforme decorre dos artigos 1293.º, 1485.º e 1548.º do CC.
Quanto aos prazos necessários para a ocorrência da usucapião, a lei indica vários prazos que variam em razão da natureza das coisas objeto de posse, dos caracteres da posse e da existência de registo da posse – cfr. artigos 1294.º e ss. do CC.
A usucapião não opera automaticamente, carecendo de invocação (cfr. artigos 1287.º, 1292.º e 1298.º do CC), sendo que, quando invocada e exercida a posse pelo lapso de tempo necessário à usucapião, os seus efeitos retroaem-se à data do início da posse – cfr. artigos 1288.º e 1317.º, al. c) do CC).
Estabelece o artigo 1376.º do CC que:
“1. Os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País; importa fraccionamento, para este efeito, a constituição de usufruto sobre uma parcela do terreno.
2. Também não é admitido o fraccionamento, quando dele possa resultar o encrave de qualquer das parcelas, ainda que seja respeitada a área fixada para a unidade de cultura.
3. O preceituado neste artigo abrange todo o terreno contíguo pertencente ao mesmo proprietário, embora seja composto por prédios distintos”.
Esta disposição legal visa impedir o parcelamento de terrenos aptos para cultura (que são os terrenos “próprios para fins agrícolas, florestais ou pecuários” – assim, Luís Filipe Pires de Sousa; Ações especiais de divisão de coisa comum e de prestação de contas, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 33) em prédios de área inferior à unidade de cultura fixada, presentemente, para Portugal Continental na Portaria n.º 219/2016, de 9 de agosto (que revogou a anterior Portaria n.º 202/70, de 21 de abril).
Na Região Autónoma da Madeira, rege sobre a matéria o Decreto Legislativo Regional n.º 27/2017/M, de 23 de agosto (publicado no DR, 1.ª série, n. 162, de 23 de agosto de 2017, pp. 4978-4979).
Por seu turno, nos Açores rege o Decreto Legislativo Regional n.º 35/2008/A, de 28 de julho, que instituiu o “Regime jurídico do ordenamento agrário”.
Nos termos do artigo 22.º do referido diploma:
“1 - Na Região a área da unidade de cultura, para efeitos de fraccionamento, é fixada nos termos seguintes:
a) Para prédios com área inferior ou igual a 5 ha a unidade mínima de cultura é de 1 ha;
b) Para prédios com área superior a 5 ha e inferior ou igual a 10 ha a unidade mínima de cultura é de 2 ha;
c) Para prédios com áreas superiores a 10 ha a unidade mínima de cultura é de 3 ha;
d) A unidade mínima de cultura para efeitos de emparcelamento é de 2,50 ha.
2 - Os prédios resultantes de divisão que respeite as unidades fixadas não poderão voltar a ser divididos num período mínimo de 10 anos”.
Importa ainda salientar que, na redação originária do artigo 1379.º do CC, se estabelecia no n.º 1 o seguinte: “São anuláveis os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º, bem como o fraccionamento efectuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377.º, se a construção não for iniciada dentro do prazo de três anos”.
Esta redação veio a ser alterada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto (que aprovou o Regime Jurídico da Estruturação Fundiária), passando a dispôr os n.ºs. 1 e 2 do artigo 1379.º do CC nos seguintes termos: “1 - São nulos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º. 2 - São anuláveis os atos de fracionamento efetuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377.º se a construção não for iniciada no prazo de três anos”.
A este respeito, refere Rui Pinto Duarte (Curso de Direitos Reais; 4.ª ed., revista e aumentada, Principia, 2020, pp. 495-496) que: “Desde que a Lei 111/2015, de 27 de agosto, deu ao art.º 1379 a sua redação atual, que determinou a nulidade de tais atos, pareceria claro que também a posse que se funde em atos de fracionamento contrários ao disposto no art.º 1376 se deveria ter como insuscetível de gerar usucapião. No entanto, persistiu nos tribunais opinião contrária (…). Certamente com vista a pôr fim a tal interpretação, a Lei 89/2019, de 3 de setembro, deu nova redação ao art.º 48 da Lei 111/2016, de 27 de agosto, que passou a incluir (…), nos seus n.ºs. 2 e 3, as determinações de que «a posse de terrenos aptos para cultura não faculta ao seu possuidor a justificação do direito a que esta diz respeito, ao abrigo do regime da usucapião, sempre que a sua aquisição resulte de atos contrários ao disposto no artigo 1376.º do Código Civil» e de que são «nulos os atos de justificação de direitos a que se refere o número anterior». O enredo da relutância dos tribunais à aplicação de leis que afastam a usucapião não terá, porém, terminado, quer porque um certo entendimento da aplicação das leis no tempo levará a que a nova redação do art.º 48 da Lei 111/2015, de 27 de agosto, só seja aplicável a casos que venham a ser discutidos num futuro longínquo, quer porque talvez venha (numa ironia histórica) a ser esgrimida a tese de que a «derrogação do instituto da usucapião» pode «atingir o núcleo do reforçadamente protegido direito constitucional da propriedade privada, porque a usucapião é uma das formas da sua aquisição»” .
Nesta linha e relativamente aos casos em que a operação de fracionamento de prédio rústico ocorra em momento anterior à de vigência da Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto (sendo que a situação se alterou, sensivelmente com a publicação desta lei e, bem assim, da referida Lei n.º 89/2019, de 3 de setembro), a jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem considerado, de forma regular e consistente, que é prevalecente a aquisição decorrente da invocação da usucapião.
Disso são exemplo os seguintes arestos (elencados por ordem cronológica decrescente):
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28-09-2023 (Pº 3147/21.6T8STB.E1, rel. ALBERTINA PEDROSO): “Desde que se verifiquem os pressupostos legais exigidos para a aquisição do direito de propriedade, a usucapião pode incidir sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura, contrariando o regime jurídico decorrente da redação dada ao artigo 1379.º, pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, que comina com a nulidade o fracionamento de prédios rústicos por ofensa à área de cultura mínima que não constituam partes integrantes de prédios urbanos (artigo 1377.º do CC)”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-01-2021 (Pº 4240/19.0T8VCT.G1, rel. RAQUEL BAPTISTA TAVARES): “Tendo a usucapião efeitos retroativos à data do início da posse (cfr. artigo 1288º do Código Civil) a data ou momento relevante para aferir se o reconhecimento do direito de propriedade, adquirido por usucapião, infringe ou não as regras legais limitativas do fraccionamento de prédios rústicos é a do início da posse. É à lei em vigor na data do início da posse que deve atender-se para determinar se o prédio é fracionado em violação da lei e quais as consequências que decorrem dessa violação. Atenta a primitiva redação do artigo 1379º n.º 1 do Código Civil, em vigor em 1998, data da divisão e início da posse, a anulabilidade do ato de fracionamento de prédios rústicos, contra o disposto no artigo 1376º, não impedia a aquisição originária do direito de propriedade por via da usucapião. Operada a divisão material do prédio rústico em duas parcelas de terreno, perfeitamente delimitadas com muros e vedações, com confrontações e áreas definidas, há mais de 20 anos, ambas com área inferir à unidade de cultura fixada pela Portaria n.º 202/70, de 21/04 e verificados os requisitos da usucapião, a aquisição por essa via do direito de propriedade sobre cada uma das parcelas deve prevalecer sobre as regras de fraccionamento dos prédios rústicos”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-05-2020 (Pº 1050/18.6T8PTL.G1, rel. MARIA JOÃO MATOS): “A usucapião é uma forma de aquisição originária de direitos, que surgem ex novo na titularidade do sujeito unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, sendo por isso absolutamente autónoma e independente de eventuais vícios (de natureza formal ou substancial) que afectem o acto ou negócio gerador da posse. Tendo a usucapião efeitos retroactivos à data do início da posse, adquirindo-se o direito no momento em que aquela se iniciou, será pela lei então em vigor que se apreciará as condições de validade aplicáveis ao objecto do direito que se pretende usucapir (nomeadamente, as relativas ao fraccionamento de prédio rústico apto para cultivo) (…). Até à alteração da redacção do art.º 1379.º, n.º 1 do CC, operada pela Lei nº 111/2015, de 27 de Agosto (que passou a cominar como nulos, e já não meramente como anuláveis, os actos de fraccionamento de prédios rústicos contrários ao disposto no art.º 1376.º do CC), a interpretação mais correcta daquele preceito coincide com a que admite a aquisição originária, por usucapião, de parcela de prédio rústico apto para cultura, ainda que com área inferior à unidade de cultura legal, desde que se verifiquem os seus pressupostos próprios”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-04-2020 (Pº 1334/10.1TBVVD.G1, rel. ALCIDES RODRIGUES): “A data ou momento relevante para aferir se o reconhecimento do direito de propriedade, adquirido por usucapião, infringe ou não as invocadas regras legais limitativas do fraccionamento de prédios rústicos é a do início da posse. Tendo a usucapião efeitos retroativos à data do início da posse (cfr. art.º 1288º do CC do CC), será a lei vigente nessa data que indicará se pode haver fraccionamento do prédio e se o mesmo for fracionado em violação da lei quais as consequências que daí decorrem. À luz da lei vigente em meados da década de 80 o fracionamento de prédios rústicos em área inferir à unidade de cultura não seria nulo, quando muito anulável, a arguir no prazo de 3 (três) anos, sob pena de caducidade da ação de anulação (primitiva redação dos n.ºs 1 e 3 do art.º 1379º do CC). Estando em causa uma divisão material de prédios rústicos e não se verificando qualquer questão de natureza urbanística, a anulabilidade do ato de fracionamento de prédios rústicos, em violação do disposto no art.º 1376º do CC, não impede a aquisição originária do direito de propriedade por via da usucapião”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20-02-2020 (Pº 933/18.8TBPTL.G1, rel. JORGE TEIXEIRA): “Perante as divergências relativas à questão de saber se a usucapião, como forma originária de adquirir, pode ou não incidir sobre parcela de terreno inferior a unidade de cultura, contrariando o regime previsto no art.º 1376.º/1 do C.C, revela-se como manifesta a natureza interpretativa do art.º 48º, nº 2 da Lei 89/2019, de 03.09, como meio de pôr termo à patente diversidade de decisões sobre aquela temática. Da conjugação do disposto no art.º 48º, nº2 da Lei 89/2019, de 03.09.2019 e arts.º 1376.º/1 com o n.º1 do art.º 1379.º, ambos do CC, na sua versão actual, fica excluída a aquisição, por usucapião, de parcela de terreno inferior à área correspondente à unidade de cultura. Todavia, o art.º 1379º, conjugado com o art.º 1376º, ambos do C. Civil, consagrava a sanção da anulabilidade pra o fraccionamento ilegal de prédios rústicos, apenas passando a ser a de nulidade com a redacção dada ao mesmo art.º 1379º pela Lei nº 111/2015. Sendo certo que a usucapião não opera automaticamente, carecendo de ser invocada (art.º 1288º do CC), como evidente resulta igualmente que não é no acto de invocação que radica a constituição do novo direito real, que se encontra o acto constitutivo do direito ou o título do fraccionamento do prédio, pelo que, e por decorrência, o estatuto e relevância da usucapião terá de ser definido pelas normas em vigor à data do início da posse, em razão de ser esse o momento a que se reporta a aquisição do direito. A usucapião é uma forma de aquisição originária que surge “ex novo” na titularidade do sujeito, unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, sendo, por isso, absolutamente autónoma e independente de eventuais vícios que afectem o ato ou negócio gerador da posse, geradores da anulabilidade do fraccionamento de terreno apto para a cultura que despoletou o início da posse, pois tal vício não é susceptível de excluir a faculdade de usucapir por parte do possuidor de parcela emergente dessa divisão ilegal. Na verdade, entre as normas vigentes à data do início da posse (1975), não se vislumbra, entre as normas legais reguladoras do fraccionamento de prédios rústicos, alguma que negue a possibilidade de adquirir por usucapião as parcelas de terreno que venham a ser objecto de posse mercê de fraccionamento ilegal de prédio rústico. E também não têm essa natureza os arts. 1376º e 1379, do CC (na versão anterior à Lei nº 111/2015), pelo que não existe a “disposição em contrário” que, nos termos do art.º 1287º, possa obstar a que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculte ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação. Isto porque, atenta a primitiva redacção do art.º 1379º, nº 1, do CC, a anulabilidade do acto de fraccionamento de prédios rústicos, contra o disposto no art.º 1376º, não impede a aquisição originária do direito de propriedade por via da usucapião, já que a tal não obsta o facto de art.º 1287º do CC excepcionar, para efeitos de invocação da usucapião, a existência de “disposição em contrário”, pois esse segmento normativo não abarca os casos de mera anulabilidade. Na verdade, estando em causa uma mera anulabilidade, sanável no caso de sobre o ato de divisão decorrer o prazo de três anos sem que seja proposta a acção constitutiva tendente a anulá-lo, a violação das regras legais cometida no fraccionamento perde, nessa hipótese, toda e qualquer relevância e deixa de poder ser invocada para qualquer efeito”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-10-2019 (Pº 317/15.0T8TVD.L1.S2, rel. FÁTIMA GOMES): “A data ou momento relevante para aferir se o reconhecimento do direito de propriedade, adquirido por usucapião, infringe ou não as invocadas regras legais limitativas do fraccionamento de prédios rústicos é a do início da posse (…).Tendo a usucapião efeitos retroactivos à data do início da posse, a lei aplicável é, sem dúvidas, a vigente à data do início da posse. Será assim essa lei que indicará se pode haver fraccionamento do prédio e de o mesmo for fraccionado em violação da lei quais as consequências que daí decorrem. O mesmo se diga em matéria de loteamento urbano, licenças e dispensas (…)”.
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-06-2019 (Pº 1786/17.9T8STB.E1.S1, rel. GRAÇA AMARAL): “A justificação notarial constitui um instrumento jurídico simplificado para estabelecimento de trato sucessivo no registo predial e visa suprir a falta de documento que comprove o direito real sobre imóvel. A escritura de justificação notarial, não sendo em si própria um negócio jurídico de que resulte o fraccionamento de prédio rústico em violação do artigo 1376.º, do Código Civil, constitui o título justificativo (por via da invocação de razões de ciência) da aquisição originária do direito real pela usucapião invocada, cujos efeitos retroagem à data do início da posse das parcelas de terreno, posse decorrente de acto de divisão material. A aquisição, por usucapião, do direito de propriedade não se encontra ferida de invalidade por desrespeito das regras do fraccionamento dos prédios rústicos cominadas com anulabilidade. Mostra-se válida a posse sobre parcelas inferiores à unidade de cultura vigente que levou à usucapião do direito de propriedade sobre os terrenos, invocada nas escrituras de justificação notarial, não obstante ter subjacente a violação do então vigente artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil (na redacção anterior à alteração dada pela Lei 111/2015, de 27-08)”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-05-2019 (Pº 916/18.8T8STB.E1.S2, rel. ROSA RIBEIRO COELHO): “A falta de escritura pública de doação ou de divisão do prédio de modo algum impede o conhecimento por terceiros interessados do exercício de atos de posse sobre o imóvel. Estando adquirido definitivamente para os autos que é à vista de todos que os réus, sentindo-se como donos, vêm habitando a casa implantada no prédio, vêm agricultando o respetivo terreno e, bem assim, demarcaram e vedaram o terreno, está excluída a hipótese de se considerar como “oculta” a mesma posse. A proibição de fracionamento de prédios rústicos constante do art.º 107º do Decreto nº 16731 e da Lei nº 2116 estabelecia a sanção de nulidade para a divisão de prédios rústicos de área inferior à estabelecida legalmente. Com o art.º 1379º, conjugado com o art.º 1376º, ambos do C. Civil, esta sanção passou a ser a de anulabilidade, tendo voltado a ser a de nulidade com a redação dada ao mesmo art.º 1379º pela Lei nº 111/2015. A usucapião é uma forma de aquisição originária da generalidade dos direitos reais de gozo que pressupõe o exercício da posse correspondente ao respetivo direito por um certo período de tempo; mas nem todos os direitos reais de gozo podem ser adquiridos por usucapião, sendo o próprio Código Civil a excluir do âmbito deste instituto o direito de uso e habitação e as servidões prediais aparentes, bem como as coisas que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insuscetíveis de apropriação individual. A usucapião é uma forma de aquisição originária que surge “ex novo” na titularidade do sujeito, unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, sendo, por isso, absolutamente autónoma e independente de eventuais vícios que afetem o ato ou negócio gerador da posse. Mesmo sendo nulo o fracionamento de terreno apto para a cultura que despoletou o início da posse, tal vício não é suscetível de excluir a faculdade de usucapir por parte do possuidor de parcela emergente dessa divisão ilegal. Não se descortina, entre as normas legais reguladoras do fracionamento de prédios rústicos, alguma que negue a possibilidade de adquirir por usucapião as parcelas de terreno que venham a ser objeto de posse mercê de fracionamento ilegal de prédio rústico. Igualmente não tem essa natureza o art.º 1376º do CC, pelo que não existe a “disposição em contrário” que, nos termos do art.º 1287º, pode obstar a que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculte ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação. Estando em causa uma mera anulabilidade, sanável no caso de sobre o ato de divisão decorrer o prazo de três anos sem que seja proposta a ação constitutiva tendente a anulá-lo, a violação das regras legais cometida no fracionamento perde, nessa hipótese, toda e qualquer relevância e deixa de poder ser invocada para qualquer efeito”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 02-05-2019 (Pº 941/17.6T8BNV.E1, rel. MATA RIBEIRO): “A usucapião, sendo uma forma originária de aquisição de direitos, pode incidir sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura, contrariando o regime jurídico que proíbe o fracionamento de prédios rústicos por ofensa à área de cultura mínima”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-03-2019 (Pº 7604/16.8T8STB.E1.S1, rel. BERNARDO DOMINGOS): “O fraccionamento ocorre com o acto de divisão material, a partir do qual se iniciou a posse sobre cada uma das parcelas e que, prolongando-se no tempo, por período legalmente suficiente, permitiu a invocação por parte dos RR. da aquisição originária do direito de propriedade sobre cada uma delas por via da usucapião.- Atenta a primitiva redação do art.º 1379º, nº 1, do CC, a anulabilidade do ato de fracionamento de prédios rústicos, contra o disposto no art.º 1376º, não impede a aquisição originária do direito de propriedade por via da usucapião. A tal não obsta o facto de art.º 1287º do CC excecionar, para efeitos de invocação da usucapião, a existência de “disposição em contrário”, segmento normativo que não abarca os casos de mera anulabilidade, como o que estava regulado na primitiva redação do art.º 1379º, nº 1, do CC”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14-02-2019 (Pº 1113/18.8T8STB.E1, rel. CRISTINA DÁ MESQUITA): “A escritura de justificação notarial em causa nos autos configura um ato jurídico de invocação da usucapião que permite registar o direito invocado sobre o imóvel e não um ato de fracionamento de um prédio rústico. Sancionando o art.º 1379.º do Código Civil, na redação anterior àquela que lhe foi dada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, com a anulabilidade os negócios jurídicos que infringissem as normas sobre fracionamento de prédios rústicos e prevendo um prazo curto (3 anos) para a respetiva impugnação - permitindo desta forma a consolidação de situações de posse sobre prédios que têm na sua génese um fracionamento ilegal ocorrido durante a sua vigência -, não faz sentido invocar o interesse público que está na base das restrições impostas ao fracionamento, devendo reconhecer-se ao usucapiante a exclusividade do seu direito de propriedade sobre o prédio no qual, desde há muito tempo, vem exercendo e de forma regular, continuada e pacificamente os poderes inerentes ao direito de propriedade”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20-12-2018 (Pº 357/18.7T8STB.E1, rel. JOSÉ MANUEL BARATA): “A proibição do fracionamento da propriedade rústica em área inferior à unidade de cultura não obsta à aquisição da mesma por usucapião, porque a proteção da propriedade privada prevalece sobre o interesse público à proibição de desemparcelamento”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26-04-2018 (Pº 418/15.4T8ALR.E1, rel. MANUEL BARGADO): “A usucapião prevalece sobre o fracionamento ilegal de um prédio, não constituindo este, só por si, fundamento para obstar à aquisição originária do correspondente direito de propriedade. Este entendimento é tanto mais válido se considerarmos que no caso concreto não está em causa uma eventual violação de regras respeitantes a operações urbanísticas como o loteamento ou o destaque, a que acresce o facto de os solos circundantes das parcelas de terreno onde se encontram edificadas as três casas de habitação descritas nos autos, não serem aptos para cultura”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-03-2018 (Pº 1011/16.0T8STB.E1.S2, rel. ROSA TCHING): “Considerando que, à data em que foi realizado o ato de fracionamento do prédio rústico em violação do disposto no art.º 1376º, nº1 do Código Civil, ainda não estava em vigor a Lei nº 111/2015, de 27 de agosto, nem a Portaria nº 219/2016, de 9 de agosto, à invalidade daquele ato é aplicável o regime da anulabilidade previsto no artigo 1379º, nº 1, na redação anterior à introduzida pela citada lei, uma vez que, nos termos artigo 12º do Código Civil, a lei nova só visa os factos novos quanto às condições de validade dos atos. A expressão «disposição em contrário» ressalvada pelo art.º 1287º do C. Civil, não abarca a situação prevista no art.º 1376º do mesmo código, na medida em que inexiste qualquer norma excecional que estabeleça, taxativamente, que a posse mantida sobre parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura não conduz à usucapião. A usucapião assenta na existência da posse, definida, nos termos do art.º 1251º do C. Civil, como o poder de facto (corpus) que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (corpus), mantido, de forma ininterrupta, pacífica e pública (arts. 1261º e 1262º, do C. Civil), durante um certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem (móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse (titulada ou não titulada e de boa fé ou de má fé – arts. 1259º, 1260º e 1294º, todos do C. Civil). Invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art.º 1288º do C. Civil), adquirindo-se o direito de propriedade no momento em que se iniciou a posse (art.º 1317º, al. c), do C. Civil). A usucapião é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, que surge ex novo na esfera jurídica do sujeito, irrelevando, por isso, quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam vícios de natureza formal ou substancial. Operada a divisão material de um prédio rústico em duas parcelas de terreno com área inferir à unidade de cultura fixada na Portaria n.º 202/70, de 21/04 e verificados os requisitos da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre cada uma destas parcelas, esta aquisição prevalece sobre a proibição contida no art.º 1376º, nº 1 do C. Civil, não operando a anulabilidade do ato de fracionamento previsto no nº1 do art.º 1379º do C. Civil (na redação anterior à introduzida pela Lei nº 111/2015, de 27.08).  A usucapião visa satisfazer o interesse público de assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer a proteção do valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25-01-2018 (Pº 7601/16.3T8STB.E1, rel. ANA MARGARIDA LEITE): “As escrituras de justificação, com alegação da usucapião, destinadas ao estabelecimento de trato sucessivo, não configuram atos translativos da propriedade, assim não constituindo atos de fracionamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-10-2015 (Pº 1737/11.4TBALM.L1-6, rel. MARIA MANUELA GOMES): “A proibição do fraccionamento da propriedade rústica em áreas inferiores à unidade de cultura não obsta à aquisição das mesmas por usucapião, uma vez que, decorrendo das regras deste instituto que o direito correspondente à posse exercida é adquirido ex novo, originariamente, está imune aos vícios que lhe pudessem ser anteriormente apontados”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03-03-2015 (Pº 5730/06.0TBLRA.C1, rel. BARATEIRO MARTINS): “A usucapião é uma forma de aquisição originária do direito real, não é o direito anterior, que tão só se extingue; não se podendo pois dizer que pela sua invocação se realiza um destaque, um loteamento ou uma divisão de prédios com área inferior à unidade de cultura, uma vez que a coisa é possuída como autónoma e é essa posse dessa coisa possuída, como autónoma, que é causa de usucapião”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-02-2014 (Pº 1350/11.6TBGRD.C1, rel. JOSÉ AVELINO GONÇALVES): “ Fora das situações em que o legislador avulso impede a “usucapibilidade” de certos bens – por ex. o caso dos baldios (artigo 2.º do Dec. Lei n.º 39/76, de 19 de Janeiro) e dos bens culturais classificados ou em vias de classificação (Lei 107/2001 de 8/09) -, os Tribunais têm dado preferência à usucapião como forma originária de aquisição, em detrimento de certas exigências de âmbito administrativo e limitações legais. Concorrendo os requisitos da usucapião, aferidos pelas características da posse, os vícios anteriores e as vicissitudes ligadas ao acto ou negócio causal não afectam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-06-2006 (Pº 06A1471, rel. ALVES VELHO): “Invocada a usucapião, como forma de aquisição da propriedade, porque de uma forma de aquisição originária se trata, irrelevam quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam os vícios de natureza formal ou substancial. O que passa a relevar e a obter tutela jurídica é a realidade substancial sobre a qual incide a situação de posse. Concorrendo, aferidas pelas características desta, os requisitos da usucapião, os vícios anteriores não afectam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes. Porque a usucapião se funda directa e imediatamente na posse, cujo conteúdo define o do direito adquirido, com absoluta independência relativamente aos direitos que antes dessa aquisição tenham incidido sobre a coisa, a invalidade formal, que afastou quaisquer efeitos da aquisição derivada, e a ilegalidade do fraccionamento (falta de escritura pública e área inferior à da unidade de cultura), carecem de potencialidade ou idoneidade para interferir na operância daquela forma de aquisição da parcela” ; e
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26-10-2000 (in CJ, tomo IV, p. 272 ss.): “São usucapíveis as parcelas com área inferior à unidade de cultura, resultantes de divisão, efetuada por partilha verbal, de um prédio rústico apto para fins agrícolas”.
Assim, conforme se concluiu no Parecer aprovado em sessão do Conselho Consultivo do IRN n.º 10/CC/2019, ref.ª n.º C.P. 1/2019 ST JSR-CC, homologado em 26-03-2019: “As disposições conjugadas dos arts. 1376.º/1 e 1379.º/1 do CC, na redação dada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, não podem deixar de pesar em matéria de aquisição por usucapião, contudo, a impossibilidade legal de constituição de prédios rústicos autónomos com área inferior à unidade de cultura, que agora se extrai das ditas normas, só assume relevância quando a posse tenha sido iniciada após a entrada em vigor daquela Lei” , já não, quando a mesma teve início antes da entrada em vigor da mencionada lei.
Sobre esta problemática, teve ocasião de debruçar-se, recentemente, o Tribunal Constitucional, tecendo no Acórdão n.º 593/2024 (Processo n.º 809/2023, 1.ª Secção, rel. José António Teles Pereira), onde se teceram, nomeadamente, as seguintes considerações:
“(…) 2.1. A discussão acerca da força relativa da proibição de fracionamento da propriedade prevista nos artigos 1376.º, n.º 1, e 1379.º, n.º 1, do CC, face às regras da aquisição da propriedade por usucapião, tem sido mantida principalmente no plano infraconstitucional.
(…) Na jurisprudência dos tribunais judiciais, como justamente aponta o acórdão recorrido, tem sido maioritário o entendimento segundo o qual a proibição de fracionamento da propriedade não constitui restrição legal impeditiva da usucapião (…).
Ora, se é certo que uma boa parte da jurisprudência nega a possibilidade de fazer prevalecer a usucapião em hipóteses que impliquem a violação de normas imperativas cominadas com a sanção de nulidade (p. ex., em caso de regras de loteamento urbano – cfr. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26/01/2016, proferido no processo n.º 5434/09, de 30/40/2015, proferido no processo n.º 10495/08, e de 07/06/2011, proferido no processo n.º 197/2000), a maioria das decisões entende, face ao disposto no artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil na redação anterior à Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, que a usucapião prevalece face à proibição do fracionamento em área inferior à unidade de cultura (cfr., os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 01/3/2018, proferido no processo n.º 1011/16, de 03/05/2018, proferido no processo n.º 7859/15, de 12/07/2018, proferido no processo n.º 7601/16, e de 08/11/2018, proferido no processo n.º 6000/16.1T8STB.E1.S1). Sendo maioritária esta jurisprudência [cfr., ainda, inter alia, os inúmeros acórdãos citados no acórdão do STJ de 21/02/2019, atrás identificado, e em Margarida Costa Andrade, “Aquisição por usucapião do direito de propriedade quando o imóvel objeto da posse tenha área inferior à unidade de cultura: Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães (1ª Secção) de 5.12.2019, Proc. 1167/18.7T8PTL.G1”, Cadernos de Direito Privado, n.º 73 (2021), pp. 35/66, especialmente p. 52], não é unânime, encontrando-se, embora em menor expressão, decisões em sentido oposto, que fazem prevalecer as regras de proibição do fracionamento – cfr., por exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30/04/2015, proferido no processo n.º 10495/08.9TMSNT.L1.S1, e do Tribunal da Relação de Guimarães de 05/12/2019, proferido no processo n.º 1167/18.7T8PTL.G1.
À divisão jurisprudencial corresponde uma paralela divisão doutrinária, sustentando a posição da prevalência das regras da usucapião, designadamente, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, XIII, Coimbra, 2022, p. 699, Margarida Costa Andrade, ob. cit., Durval Ferreira, Posse e usucapião, 3.ª ed., Coimbra, 2008, pp. 525 e ss., e a posição oposta entre outros, Fernando Pereira Rodrigues, Usucapião, constituição originária de direitos através da posse, Coimbra, 2008, p. 35, e Mónica Jardim e Dulce Lopes, “Acessão industrial imobiliária e usucapião parciais versus destaque”, in Fernanda Paula Oliveira (org.), O urbanismo, o ordenamento do território e os tribunais, Coimbra, 2010, p. 810.
2.2. Feita esta breve e necessária incursão pela jurisprudência e pela doutrina no plano infraconstitucional, há que compreender os termos em que a discussão transita para o plano jus-constitucional, aquele ao qual o presente recurso nos transporta.
Como se referiu supra, o artigo 1379.º foi alterado pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto. A redação primitiva – aplicável e aplicada nos presentes autos – prescrevia como sanção referida aos atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º a anulabilidade. Esta opção do legislador tinha como consequência que a violação das sobreditas regras não impedia a estabilização e consolidação das situações constituídas em violação da lei, designadamente, da regra relativa à unidade de cultura. Como explicam Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª ed. (reimpressão), Coimbra, 2010, p. 65 (no mesmo sentido e com indicação doutrinária abundante, cfr. Margarida Costa Andrade, ob. cit., p. 50):
“[…]
[Se] através de um negócio jurídico nulo (v.g. por falta de forma) se realizar um fracionamento ou uma troca contrária ao disposto nos artigos 1376.º e 1379.º, e se, na sequência disso, se constituírem as situações possessórias correspondentes, aqueles preceitos não obstam a que estas situações se consolidem por usucapião, logo que se verifiquem todos os requisitos legais. Embora as regras sobre fracionamento e troca de terrenos aptos para cultura sejam determinados por razões de interesse público, os negócios que as infrinjam só são impugnáveis dentro de um prazo bastante curto (o prazo indicado no nº 3). Decorrido este prazo, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for não podendo, por conseguinte, impedir a aquisição de direitos por usucapião.
[…]” (sublinhado acrescentado).
Só com a já referida Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto (não aplicável ao caso), o legislador passou a prescrever a sanção de nulidade no artigo 1379.º, n.º 1, do CC. Com esta alteração, alguns autores entenderam que a prevalência da usucapião nas sobreditas circunstâncias passou a implicar não apenas a violação de normas infraconstitucionais, mas também a violação de normas constitucionais. É o que sustenta José A. R. L. González, “Usucapião e fracionamento de prédios rústicos”, Revista do Ministério Público, n.º 148 (outubro-dezembro de 2016), pp. 9/37, 23 e ss. [posição que é também a de Pedro Caetano Nunes, “50 anos do Código Civil – Direitos reais”, in José João Abrantes (org.), 50 anos do Código Civil de 1966, Coimbra: Almedina, 2018, pp. 344/345]:
“[…]
Apesar de numerosa jurisprudência em sentido contrário, julga-se igualmente inadmissível a usucapião (ou a acessão, acrescente-se) contrária a regras urbanísticas, designadamente, a regras sobre loteamentos urbanos ou sobre fracionamento de prédios rústicos, pois está aqui em causa, como no que respeita aos bens de domínio público, a tutela direta de um certo interesse público.
A partir do que antecede, mas dependente de demonstração ulterior, pode extrair-se de imediato uma ilação puramente empírica: a usucapião não pode dar-se sempre que da sua invocação resulte a infração de normas primordialmente destinadas a proteger interesses gerais da comunidade.
14. No que toca especificamente ao fracionamento aos prédios rústicos, milita a favor desta perceção, em primeiro lugar, a própria alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 111/2015, de 27/08, no n.º 1 do artigo 1379.º do Cód. Civil.
Originalmente, o fracionamento em contravenção da interdição legal instituída pelo artigo 1376.º do Cód. Civil gerava a anulabilidade do ato que lhe desse origem, o que significava, bem vistas as coisas, que não sendo exercido o direito potestativo de anulação pelo Ministério Público ou por qualquer proprietário que gozasse do direito de preferência nos termos do artigo 1380.º do mesmo diploma, dentro do prazo fixado pelo anterior n.º 3 do artigo 1379.º, aquele ato, tornando-se inatacável, consolidava-se definitivamente, E, afinal, o resultado proibido acabava por, não obstante, ser obtido. Seria até contestável, por isso, a afirmação do caráter imperativo da norma que proibia o parcelamento de prédios rústicos em desrespeito pelo mencionado n.º 1 do artigo 1379.º do Cód. Civil.
Ao decretar-se agora, por intermédio da nova redação introduzida no n.º 1 do artigo 1379.º do Cód. Civil, que “são nulos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378, incrementou-se a certeza de que nestes se encontram encerradas normas de índole imperativa. O próprio fundamento geral da nulidade – a salvaguarda do interesse público – tornou-se bastante mais nítido.
[…]
Até 2015, o próprio legislador admitiu a consolidação, após curto prazo, dos interesses de direito privado subjacentes ao instituto da usucapião. Dito de outro modo, foi opção do legislador não impor, de forma definitivamente injuntiva, aos particulares as regras relativas à proibição do fracionamento. Como tal, não pode afirmar-se que a interpretação em causa faz prevalecer os interesses particulares contra a imperatividade das regras de ordenamento do território – tese em que assentou o recurso. Em suma, se o próprio legislador decidiu, até 2015, não dar cumprimento aos comandos do artigo 66.º da Constituição por via da rigorosa imperatividade das regras de proibição do fracionamento dos prédios, então a interpretação que se limita a extrair as consequências dessa não imperatividade não poderá, por essa via, entender-se como violadora da Lei Fundamental.
2.3. Não se prefiguram, pois, razões para afirmar um juízo de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 1287.º do CC, na interpretação segundo a qual a proibição de fracionamento da propriedade prevista nos artigos 1376.º, n.º 1, e 1379.º, n.º 1, do CC, este na sua redação originária, não constitui restrição legal impeditiva da usucapião (…)”.
No caso, verificando-se que o facto em que se funda a aquisição remonta - ou seja, teve o seu início - há mais de 20 anos, as limitações decorrentes da definição da área de cultura não têm aplicação à situação dos autos - cujo início corresponde a momento anterior ao da entrada em vigor da Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto.
Nos termos expostos, as conclusões recursórias soçobram.
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Em conformidade com o exposto, a apelação deverá ser julgada improcedente, com manutenção da decisão recorrida.
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De acordo com o estatuído no n.º 2 do artigo 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
“Vencidos” são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses.
Conforme se escreveu no Acórdão do STJ de 06-12-2017 (Pº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES), cujo entendimento se subscreve: “O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão”.
Em conformidade com o exposto, a responsabilidade tributária incidirá, in totum , sobre o apelante, que decaiu integralmente na presente instância recursória – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.

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5. Decisão:
Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2.ª Secção Cível, em:
a) Julgar improcedentes as nulidades arguidas;
b) Rejeitar, por inobservância dos ónus de impugnação a que se refere a al. c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, a impugnação de facto deduzida pelo apelante; e
c) Julgar improcedente a apelação, quanto à impugnação da matéria de direito, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo réu/apelante.
Notifique e registe.

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Lisboa, 7 de novembro de 2024.

Carlos Castelo Branco
António Moreira
Fernando Caetano Besteiro

PUNTO RESOLUTIVO

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